25 de Novembro de 1975, fazer a sua história
As opiniões sobre o que se passou em 25 de Novembro de 1975 dividem-se consoante o lugar no espectro político em que são expressas. Penso ter chegado a hora de fazer a História dos acontecimentos de há 45 anos.
À memória, com gratidão, de Luís Ferreira de Macedo
Num colóquio, em 2009, moderei uma mesa na qual estiveram presentes militares de Abril, na maioria pertencentes ao campo derrotado em 25 de Novembro de 1975. A conversa desviou-se para os mistérios dessa data e cada um revelou ter testemunhado factos diferentes, estando todos genuinamente a dizer a verdade. Assistiu-se então a um “efeito Rashomon” [1] ou ao que retrata a parábola indiana dos “Cegos e o Elefante”: um grupo de invisuais que nunca se depararam com um elefante tentam conceptualizá-lo através do toque; mas, como cada um acede a uma parte diferente do corpo do animal, descrevem-no com base nessa experiência limitada.
Ora, confrontar todas as perspectivas e narrativas dos factos, interpretando-as e tendendo para a procura de uma verdade que ultrapasse as memórias discordantes e individuais, é o que faz a História. E esta está longe de ter sido feita, no caso do “25 de Novembro de 1975”, para além do discurso dos vencedores. Correspondendo ao desafio de um dos protagonistas do campo vitorioso, general Ramalho Eanes, ao afirmar, em 2015, que “os momentos fracturantes não se comemoram, recordam-se [e] apenas para se reflectir sobre eles”, lembro, em estilo telegráfico, acontecimentos que penso dever ser tidos em conta numa história do 25 de Novembro de 1975.
29 de Maio – Reunião em Bruxelas no âmbito da NATO com o Presidente e secretário de Estado norte-americanos, Ford e Kissinger, que, dois dias depois, se encontram, em Madrid, com Arias Navarro e Francisco Franco.
8-30 de Julho – Os “gonçalvistas” — apoiantes de Vasco Gonçalves, chefe dos governos provisórios II a IV — apresentam o “Documento-Guia da Aliança Povo-MFA”. Suceder-se-iam, no mês seguinte, documentos de outras duas facções militares: o do “grupo dos nove” e, autonomizando-se dos “gonçalvistas”, a “Autocrítica Revolucionária do Copcon”. O PS promove manifestações, em Lisboa e no Porto, exigindo, com o apoio do PPD, a demissão de Vasco Gonçalves, enquanto o PCP reivindicava a dissolução da Assembleia Constituinte. Criação, a 30, no Conselho da Revolução (CR), de um triunvirato formado por Vasco Gonçalves, Otelo Saraiva de Carvalho e Francisco Costa Gomes, que fracassa na tentativa de superar as divisões no MFA.
8-22 de Agosto – Tomada de posse do V Governo, de Vasco Gonçalves, e afastamento do CR de Melo Antunes e outros elementos do “grupo dos nove”. O PS exige o desmantelamento da 5.ª Divisão e a demissão de Vasco Gonçalves, que, no dia 18, profere um discurso exaltado, em Almada. Reunião do Presidente da República, general Costa Gomes, com Ernesto Melo Antunes e Otelo Saraiva de Carvalho, que rompeu com Vasco Gonçalves, da qual resultou o documento de compromisso “Plano Político do MFA”. Transferência para a base aérea de Cortegaça de oficiais, aviões e helicópteros, pelo Estado-Maior da Força Aérea (EMFA). Criação pelo PCP da Frente de Unidade Popular (FUP), integrada por forças de extrema-esquerda, que só duraria até dia 28, com a saída daquele partido.
30 de Agosto –Nos EUA, o chefe da CIA, Vernon Walters, envia um documento a Kissinger, alertando: “Portugal à beira da guerra civil.” Demissão do V Governo de Vasco Gonçalves, cuja nomeação para CEMGFA foi recusada pelo PS e PPD, com a aceitação posterior da Assembleia do MFA.
Setembro – O Presidente da República indigita para primeiro-ministro do VI Governo Provisório o almirante Pinheiro de Azevedo (19). O CR passa a ser dominado pelo “grupo dos nove”. Enquanto, em Lisboa e no Porto, se sucediam manifestações, da FUR — sucedânea da FUP, sem o PCP — e dos Soldados Unidos Vencerão (SUV), o PS e o PPD apoiavam o VI Governo.
9 de Outubro – Reincorporação de militares da Região Militar (RM) do Porto em novas companhias do Regimento de Comandos (RG) e formação do Agrupamento Militar de Intervenção (AMI).
7 de Novembro – Após selagem das instalações da Rádio Renascença (RR), Pinheiro de Azevedo ordena a destruição das respectivas antenas, pelo Regimento de Comandos (RC), quatro dias depois da deslocação do embaixador norte-americano, Frank Carlucci, ao Norte, onde a RM passou a ser chefiada pelo general de direita, Pires Veloso.
17-24 de Novembro – O CEMFA, general Morais e Silva, ordena a passagem à licença registada de 1200 pára-quedistas da Base-Escola de Tancos, onde a ordem foi repudiada. O CR nomeia o brigadeiro Vasco Lourenço comandante da RM de Lisboa, em substituição de Otelo Saraiva de Carvalho, que continuava à frente do Copcon. Na sede desta unidade repudiaram essa nomeação, confirmada pelo Presidente da República e pelo CR, mas decidindo não levar a cabo qualquer operação que servisse de pretexto a uma acção da direita e manifestando apoio à luta dos pára-quedistas de Tancos.
25 de Novembro – Na madrugada, pára-quedistas ocupam as bases aéreas de Tancos, Monte Real, Montijo e o Comando da 1.ª Região Aérea de Monsanto, exigindo a demissão de Morais e Silva e detendo o comandante, general Pinho Freire. Este informa o Presidente da República, Ramalho Eanes e o CEMFA, que ordena a concentração de pára-quedistas fiéis na base de Cortegaça.
6h – O RALIS toma posições nos acessos à auto-estrada do Norte, ao Aeroporto da Portela e na zona de Beirolas, enquanto tropas da Escola Prática de Administração Militar (EPAM) ocupavam os estúdios da RTP.
9h-13h30 – Reunião entre o Presidente da República, os elementos do CR e os comandos militares, do qual resulta um aviso do EMGFA de que seria usada a força contra os revoltosos. Convocado pelo Presidente da República, Otelo Saraiva de Carvalho é instado no Copcon a não se dirigir a Belém. Decide o contrário e ouve de Costa Gomes que o Copcon ficaria sob o seu comando.
16h – Após ter contactado Álvaro Cunhal e a Intersindical Nacional, o Presidente da República obtém do PCP a confirmação de que não mobilizaria os seus militantes para qualquer acção de rua.
17h30 – Apelo na Emissora Nacional, ocupada pelo Copcon e pelo Regimento de Polícia Militar (RPM), ao envio de reforços para essas unidades, que mobilizaram as suas forças, enquanto o capitão Duran Clemente, da EPAM, apelava na televisão à mobilização popular junto dos quartéis. Às 21h10 viria a ser subitamente interrompido, prosseguindo a emissão do estúdio do Porto.
19h15 – Os pára-quedistas ocupantes da base de comando aérea de Monsanto rendem-se ao RC da Amadora, que avançou contra as unidades do RPM, RALIS, EPAM e Regimento de Artilharia de Costa (RAC).
Pelas 21h – O general Costa Gomes, ao lado de Otelo Saraiva de Carvalho, comunica a imposição do estado de sítio na RM de Lisboa. Pouco depois, o general Pinho Freire anuncia a retoma do comando da 1.ª Região Aérea de Monsanto e, mais tarde, render-se ia a Base de Monte Real.
26 de Novembro – Terminava o “25 de Novembro”, não sem que o RC da Amadora atacasse a unidade da RPM, provocando vítimas mortais de ambos os lados.
27-29 de Novembro – Cerca de cem oficiais de esquerda são detidos e Otelo Saraiva de Carvalho e Carlos Fabião destituídos dos cargos de comandante do Copcon e de CEME. Este foi atribuído ao então coronel — depois general — António Ramalho Eanes. O VI Governo Provisório retomava funções, enquanto ocorriam alterações em sectores das Forças Armadas e no CR.
Algumas observações
As opiniões sobre o que se passou em 25 de Novembro de 1975 dividem-se consoante o lugar no espectro político em que são expressas. Enquanto uns consideram ter-se tratado de uma tentativa de golpe de Estado comunista e da extrema-esquerda, outros afirmam ter havido uma armadilha, lançada pelas forças de centro-esquerda, direita e extrema-direita às de esquerda e extrema-esquerda. O oficial spinolista António Ramos, insuspeito de esquerdismo, confirmou que, no 25 de Novembro, terá havido diversas “cascas de banana” lançadas à extrema-esquerda, que nelas caiu. Assinalou, entre estes, a extinção administrativa do Corpo de Tropas Pára-quedistas e o corte da Estrada Nacional 1. Afirmou que o PCP não participou na “intentona”, que, por isso mesmo, fracassou, pois faltara a “máquina de informações” comunista.
Tudo aponta para que tenha havido provocações às quais responderam algumas das forças derrotadas, enquanto outras actuaram defensivamente. No campo ofensivo e vitorioso, terão existido provavelmente diversos “25 de Novembro”. Vasco Lourenço assinou, na semana passada, uma “reflexão”, enaltecendo a actuação do “grupo dos nove”, ao qual pertenceu, por ter evitado, há 45 anos, um outro “28 de Maio” e assinalando ter havido uma “esperada tentativa dos não democratas” para terminar com a herança do “25 de Abril”.
Lembre-se ainda que outro elemento do “grupo dos nove”, Ernesto Melo Antunes, defendeu logo então na TV que sem o PCP não se poderia construir em Portugal uma sociedade democrática, respondendo provavelmente a veleidades de proibir esse partido e outros grupos de esquerda. Vasco Lourenço assinalara já anteriormente que, no seio do “grupo dos nove”, que não teve qualquer iniciativa de ataque, em 25 de Novembro de 1975, nem todos aprovaram o chamado “plano dos coronéis”.
Neste plano, encabeçado por António Ramalho Eanes, incluía-se, entre outros fins, o afastamento dos generais Otelo e Fabião, a substituição pelo AMI do Copcon e o controlo do Serviço Director e Coordenador de Informações (SDCI), aos quais foi atribuído — embora sem provas — a autoria da “intentona”, pela Comissão de Inquérito aos Acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, da lavra dos oficiais vitoriosos. No respectivo relatório, de Janeiro de 1976, esta comissão reconheceu, não por acaso, que só após “decorrido largo tempo” se chegaria objectivamente a uma conclusão sobre o “25 de Novembro”. Penso ter chegado a hora de fazer a História dos acontecimentos de há 45 anos.
[1] Nome do filme de 1950 de Akira Kurosawa, visto no mundo ocidental como revelando a incapacidade de se chegar à “verdade única” sobre um evento, devido aos testemunhos conflituantes motivados pela “areia movediça do ego”