Ainda o estranho caso do Novo Banco (I)
A dificuldade em esclarecer as dúvidas, incertezas e suspeições que se têm vindo a acumular ao longo dos anos resulta em grande parte de questões e perguntas que nunca foram respondidas de forma clara.
1. O caso da “venda” do Novo Banco a um fundo imobiliário norte-americano “saltou” de novo para a praça pública. Desta vez como resultado de uma deliberação parlamentar que condiciona uma nova injecção de capital pelo Fundo de Resolução ao(s) resultado(s) de uma auditoria, conduzida pelo Tribunal de Contas. De novo a opinião pública é surpreendida pelos argumentos e pelos contra-argumentos dos que criticam e dos que apoiam a iniciativa parlamentar.
Os primeiros lançam sobretudo mão de dois tipos de argumentos: por um lado, referem que a alternativa à venda do Novo Banco seria a nacionalização ou a liquidação, soluções que – afirmam – ficariam sempre mais caras; por outro, dizem que o Estado tem de cumprir as suas obrigações contratuais, sob pena de cair o “Carmo e a Trindade”, com a perda da credibilidade conseguida nos últimos anos junto dos mercados financeiros.
Quem defende esta posição sabe que utiliza dois argumentos poderosos quando considerados em abstracto: as nacionalizações pós-25 de Abril deixaram uma marca duradoura na nossa memória colectiva, com fortes conotações ideológicas; a ideia de que o Estado pode não cumprir as suas obrigações contratuais colide frontalmente com princípios básicos de um Estado enraizado num regime democrático.
No entanto – com a excepção de quem defende soluções muito marcadas por posições ideológicas –, não estaria em causa uma nacionalização tradicional, mas sim uma intervenção sobre o banco com o objectivo de o estabilizar, relançar e vender, em condições que permitissem uma recuperação posterior de valor. O modelo inglês aplicado a dois importantes bancos sistémicos na sequência da crise financeira – Loyds e Royal Bank of Scotland – mostrou um caminho possível. Para além disso, admitir que uma tal solução ficaria mais cara raia o absurdo quando o custo global do caminho escolhido já ultrapassou o montante que, no âmbito do programa da troika, foi destinado à estabilização de todo o sistema bancário – 12 mil milhões de euros – e ainda a operação não chegou ao fim.
Já no que se refere ao segundo argumento – o Estado deve cumprir os seus compromissos contratuais –, esquece que um contrato pressupõe que ambas as partes o cumpram e não apenas um dos contraentes – neste caso, o Estado. Questão que a auditoria solicitada é suposto esclarecer, isto é, avaliar se o comprador do Novo Banco – ou o Conselho de Administração por ele – tem vindo a cumprir, ou não, as suas próprias obrigações contratuais. Em particular, no que respeita à gestão e à alienação dos créditos cobertos pela garantia do Estado. Questão de importância inquestionável quando está em causa a mobilização de um montante tão elevado de recursos públicos.
Quem, por sua vez, defendeu no Parlamento que esta questão deve ser esclarecida antes de novas injecções de capital, solicitou ao Tribunal de Contas uma nova auditoria. Embora esta solicitação possa ser justificada pela falta de respostas das auditorias anteriores – conduzidas por entidades especializadas privadas –, ela arrasta para um “terreno técnica e politicamente minado” uma das nossas mais importantes instituições. Questão a que voltarei adiante.
2. A verdade é que este assunto – BES/Novo Banco – tem-se vindo a transformar num “caso de regime”, dado o custo que está a assumir e o desgaste que o seu arrastamento está a provocar na imagem e na credibilidade de algumas das mais importantes instituições da nossa democracia: Parlamento, partidos políticos, Governo e supervisores dos mercados financeiros. A circunstância de tal acontecer num período em que nos debatemos com os efeitos económicos, sociais e políticos de uma crise com um impacto sem precedentes que está a levar ao limite a capacidade financeira de resposta do Estado, aumenta a responsabilidade de quem tem de dar respostas para as dúvidas que subsistem.
Pessoalmente, permaneço convencido que a dificuldade em esclarecer as dúvidas, incertezas e suspeições que se têm vindo a acumular ao longo dos anos resulta em grande parte de questões e perguntas que nunca foram respondidas de forma clara: desde logo, o que pode explicar a evolução e o colapso de um dos nossos mais importantes bancos sistémicos, detentor de uma sólida quota de mercado e de uma marca prestigiada – o BES. Foi apenas o resultado da acção da gestão do grupo? Verificaram-se falhas graves dos auditores externos? Os diferentes supervisores – bancários, capitais, seguros – fizeram o que deviam? Porque foi seguida na Resolução uma metodologia técnica e operacionalmente tão complexa e com tantos riscos? Porque foi tomada a decisão de prosseguir com a alienação do Novo Banco, quando eram evidentes as dificuldades em estabilizar o preço de venda e porque é que tal contrato nunca foi tornado público? Uma vez decidida e concretizada a “venda” à Lone Star, como é que tem sido assegurado o acompanhamento e o controle das operações que conduziram à necessidade de accionar o chamado “mecanismo de capital contingente”? Em particular, como têm sido acautelados possíveis conflitos de interesses e assegurada uma adequada recuperação de valor nas vendas das carteiras de crédito cobertas pela garantia do Estado? Por último, qual foi o papel da Comissão Europeia e da sua Direcção-Geral da Concorrência em todo este processo?
O interesse em esclarecer estas questões assume particular acuidade e urgência no que se refere às operações realizadas depois da venda à Lone Star, na medida em que continua a estar em causa a utilização de avultados recursos públicos. Em contrapartida, no que se refere às decisões tomadas até à venda do Novo Banco, a sua avaliação reveste-se de interesse sobretudo pelos ensinamentos que pode trazer para a reorganização do nosso Sistema de Supervisão dos diferentes mercados financeiros – bancário, capitais e seguros. Questão crítica no contexto da nossa participação no movimento de integração financeira da Europa do euro, dada a crescente complexidade e interpenetração dos diferentes mercados financeiros, tanto a nível interno como da Zona Euro. Para além das explicações devidas a quem no final suporta os custos – os contribuintes –, trata-se de aprender com os problemas passados. Infelizmente, continua a prevalecer entre nós uma cultura que muitas vezes não favorece o escrutínio público e a avaliação transparente de actos e decisões que envolvem interesses públicos relevantes. Questão de importância crítica em democracia. (a continuar em próximo artigo)