Globalização versus apropriação cultural

Se queremos proteger culturas marginais e integrá-las, é melhor garantir que entram na bolha do Ocidente e comercializá-las, sob pena de caírem em raciocínios fundamentalistas de preservação cultural desligados da realidade.

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LUSA/Ministry of Cultural Heritage and Activities / HANDOUT

Da esquerda à direita, os extremos repudiam a visão globalista, mas por motivos diametralmente opostos. A direita nacionalista é proteccionista com os seus. A esquerda vê a globalização a assumir contornos perigosos em algumas culturas estrangeiras sagradas, ameaçadas pelo liberalismo económico. Os malvados são os globalistas a apropriam-se de culturas “frágeis”, num propósito frio lucrativo. 

Nos últimos dias, os Vancouver Canucks, uma equipa de hóquei canadiana, têm enfrentado acusações de apropriação cultural pelo uso da iconografia indígena Salish. O clube é criticado nas redes sociais por não ter consultado a população indígena na elaboração do seu logótipo. Outra notícia idêntica é a da gigante americana McDonald’s, ao ter introduzido um hambúrguer no menu de Natal influenciado pela culinária indígena jamaicana Jerk. A cadeia foi censurada por se ter apropriado culturalmente de uma gastronomia que não lhe pertencia e de agir sem autorização nem ofertas de compensação, pondo em perigo a identidade indígena.

São somente duas notícias; podia continuar, a internet é incendiária nas acusações de apropriação cultural. Dada a natureza das redes sociais em polarizar os debates, vou pelo mesmo caminho: de um lado os que vêem as notícias acima como apropriação cultural imoral que deve ser combatida; do outro, os que reconhecem como sendo dois casos de globalização humanista de homenagem a culturas minoritárias. Depois, há os que não têm lugar neste frenesim, os cépticos, que legitimam a globalização, mas não reconhecem o seu humanismo, nem a entendem como uma homenagem. 

A McDonald’s é um exemplo do sucesso da globalização, uma ideologia que sustenta a integração de culturas minoritárias “frágeis” no Ocidente. De facto, criar um significado único entre o Ocidente e o resto do mundo é um sonho; porém, praticamente só se concretizou através do expansionismo imperial que uniformizou o pensamento dos povos. Esta homogeneização aconteceu em muitas ex-colónias, onde se estabeleceram sistemas parlamentares e judiciais baseados nos impérios que as subjugavam, ficando mais próximas do pensamento ocidental.

Obviamente não pretendo reescrever a História, o colonialismo está repleto de atrocidades, mas não há como negar o veículo de globalização que foi. Outro exemplo é a União Europeia, criada para nos aproximarmos, mas onde já estávamos próximos o suficiente para a instituir em conjunto. Aqui, também os impérios tiveram um papel. Após a queda do Império Romano do Ocidente, a maioria dos povos europeus não se resignaram à cultura romana, ninguém voltou a rezar aos deuses bárbaros, uma vez que todos tinham nascido sob o domínio romano e já não conheciam outra realidade senão o Cristianismo. No fim, o Império Romano deixou parte da Europa a rezar ao mesmo deus, um factor importante de uniformização que, mais tarde, contribuiu para o aparecimento da União Europeia. 

Apesar do nacionalismo na Europa desta década não tornar evidente, olhando pelos binóculos da História, milénio após milénio, ficámos culturalmente mais homogéneos. Há 3000 anos, antes do Império Romano, existiam mais de 150 confederações celtiberas independentes na Península Ibérica, com tradições e dialectos diferentes; hoje, em todo o mundo, existem “apenas” 195 países. Hoje comunica-se em mais de 7000 línguas e dialectos, mas só 23 são faladas por mais de metade da população mundial. Somos cada vez mais parecidos. Talvez daqui a 100 mil anos, falemos um único dialecto e países serão diplomacias da pré-História. 

A História parece ser feita em sentido convergente, poderá ser imprudente nadar contra a corrente e fechar culturas minoritárias “frágeis” aos nossos hábitos consumistas ocidentais. A extrema esquerda, preocupada em assumir um papel de protectora, nem se apercebe que estas mini-culturas só sobrevivem se forem apropriadas pelo Ocidente. A natureza do Ocidente é esta mesmo: esquecemos aquilo que não é um produto ou experiência, logo ignoramos culturas que não são comercializadas. É desumano, mas é a forma como conhecemos outras tradições e evoluímos. Se queremos proteger culturas marginais e integrá-las, é melhor garantir que entram na bolha do Ocidente e comercializá-las, sob pena de caírem em raciocínios fundamentalistas de preservação cultural desligados da realidade. 

Globalização não é uma alternativa bonita, mas é a necessária (e a melhor que temos). 

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