Marcelo e os descontentes
Em 2015, Marcelo foi eleito com 2,4 milhões de votos. Mais de 2,3 milhões votaram noutros candidatos. E abstiveram-se quase cinco milhões. Em 2020, entre uma abstenção que irá crescer em relação a 2015 e o voto noutros candidatos, os descontentes serão seguramente mais de sete milhões. Uma imensa maioria, em larga medida, silenciosa.
No próximo dia 24 de Janeiro vamos eleger o próximo Presidente da República. Realizada a meio de uma pandemia, sem que a lei eleitoral tenha sido alterada, é de esperar uma abstenção elevada nesta eleição. Tanto mais que, à primeira vista, ela resume-se a uma só coisa: a reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa. A única dúvida é se Marcelo conseguirá ultrapassar os 70% (e quase 3,5 milhões de votos) obtidos por Mário Soares na sua reeleição presidencial de 1991. Como muitas vezes acontece, as primeiras impressões podem ser enganadoras. Não me refiro à reeleição de Marcelo. Penso, antes, em todos aqueles que não irão votar Marcelo. É que, por vezes, as vozes descontentes dizem tanto sobre o que se passa num país quanto o voto de apoio no status quo.
O voto Marcelo é um voto de quem está satisfeito com a presente situação. De quem subscreve a colaboração estreita que Marcelo cultivou ao longo dos últimos cinco anos com o Governo em funções: primeiro com a “gerigonça” e, desde 2019, com o Governo minoritário do PS. É o voto de quem aprova a parca interferência do Presidente na ação governativa, frequentemente em uníssono com António Costa. É também um voto socialmente conservador, num candidato que nunca escondeu a sua fé católica e respeito pela Igreja. Mas, fundamentalmente, o voto Marcelo é um voto de apoio à política das emoções que este inaugurou no nosso país. Uma forma de fazer política em que os sentimentos de proximidade, afabilidade, simpatia e empatia foram explorados sistematicamente para construir a imagem pública de Marcelo junto do eleitorado. Tanto assim que Marcelo cedo fez sua a tese socialista da “descrispação.” O voto Marcelo corresponde, a crer nas sondagens de opinião, a mais de 60% dos portugueses que irão votar na próxima eleição.
O que sobra, então, perante tal maioria? O que sobra são os descontentes com a situação. E os descontentes com um estado de coisas que se eterniza há várias gerações. Os descontentes são um mar de gente. Gente muito diversa. Pessoas com preocupações não só diferentes entre si, mas muitas vezes opostas. Em todo o caso, são pessoas que não se reveem no sistema representado por Marcelo Rebelo de Sousa.
Os descontentes incluem, desde logo, os que desejavam que o ocupante do Palácio de São Bento tivesse sido mais crítico do Governo. São pessoas para quem casos como os incêndios de 2017, o roubo de armas em Tancos nesse mesmo Verão, a saída de Joana Marques Vidal da Procuradoria-Geral da República em 2018, e, já este ano, a ida de Centeno para o Banco de Portugal e a não recondução do anterior presidente do Tribunal de Contas mereciam do Presidente da República um escrutínio mais apertado da ação do Governo. Sendo questões políticas importantes, estas são questões eminentemente institucionais. Têm a ver com o regular funcionamento das instituições, em particular com a sua saúde e robustez. Daí que quem se preocupa com estas questões vota, em geral, nos partidos do sistema. Mas estes não são a maioria dos descontentes. Bem pelo contrário.
A esmagadora maioria dos descontentes vota noutros partidos ou nem sequer vota regularmente. É nas margens do sistema que encontramos estas vozes. Na abstenção e em partidos ou candidatos que tentam mobilizar descontentamentos.
É o caso dos descontentes com o caráter cosmopolita e multicultural da sociedade portuguesa. Para quem a abertura de fronteiras e influxo de emigrantes é vista como uma ameaça ao seu posto de trabalho. Para quem os turistas e o alojamento local são ameaças ao carácter tradicional do bairro e a rendas baratas. Com pouca imprensa e ainda menos representação política, este tipo de descontentamento tem tudo para vir a crescer entre nós.
Há, por outro lado, quem veja na globalização económica a razão dos seus problemas. Aqui o principal descontentamento é com a precariedade. Incluem-se aqui muitos desempregados e pessoas com rendimentos mais baixos. Para estes, a defesa (nem que seja simbólica) de serviços como o SNS é importante para trazer algum conforto a quem tem pouca confiança na mobilidade social, desconfia da meritocracia, e cujo nível de vida e expectativas há muito que estagnaram. Apesar destes descontentamentos figurarem com regularidade nas colunas de opinião e até em manifestos eleitorais de quase todos os partidos, a verdade é que as razões deste descontentamento se mantêm. Pior: com o fecho do mercado laboral britânico, em particular para trabalhadores pouco qualificados, Portugal perde uma importante válvula de escape deste descontentamento.
Quer os satisfeitos, quer os descontentes de que aqui falo são um eleitorado potencial. São mais causas possíveis de mobilizar do que intenções de voto. Só existem se forem trabalhadas politicamente; se este trabalho político for bem-sucedido, são passíveis de serem traduzidas em votos. Não correspondem, portanto, às intenções de voto nos vários candidatos de que nos vão dando conta as sondagens de opinião. Isto não significa que os descontentes não existam. Pelo contrário, a crer nos números disponíveis, tudo indica que os descontentes com a situação e com a estrutura de poder vigente em Portugal constitua uma larga maioria. Em 2015, Marcelo foi eleito com 2,4 milhões de votos. Mais de 2,3 milhões votaram noutros candidatos. E abstiveram-se quase cinco milhões. Em 2020, entre uma abstenção que irá crescer em relação a 2015 e o voto noutros candidatos, os descontentes serão seguramente mais de sete milhões. Uma imensa maioria, em larga medida, silenciosa.
A questão política fundamental na eleição de dia 24 é, portanto, a de como dar resposta a estes descontentamentos. A receita habitual de palavras bondosas e as mesmas políticas de sempre não chega. Já é tempo de ouvir os descontentes. De levar a sério o que têm para dizer. Ainda que muito do que têm para dizer seja difícil de ouvir. Esta é a missão do próximo Presidente da República. Entender as causas da insatisfação desta maioria silenciosa e dar voz a novas soluções para velhos problemas, se necessário em contracorrente com o Governo e os partidos, é o que se espera de Belém.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico