“Então o menino doutor está por cá? Não se lembra de mim?” Apesar do tom simpático, a palavra “menino” tinha desalinhado o meu humor matinal. Afinal — pensei eu com a arrogância típica de um novato — já não era nenhum aluno de medicina, mas sim um interno do então designado Ano Comum. É desta que vais deixar crescer a barba, pensei. Perante a minha hesitação, ela apressou-se a desenvolver. “Estive há dois dias nas urgências. Até me puseram a soro e tudo. E fiz exames ao coração.” Eu acenei com pouca convicção e o meu orientador, experiente médico de família, percebeu a deixa e perguntou: “Em que posso ajudar hoje?”.
Enquanto a D. Maria — chamemos-lhe assim — se instalava pousando languidamente a carteira, o casaco grosso e o longo cachecol, eu aproveitei para disfarçadamente folhear o meu pequeno caderno preto onde registava tudo o que tinha observado no hospital e centro de saúde. Lá acabei por encontrar a nota de entrada da doente. Os apontamentos eram soltos mas permitiram-me resumir o quadro clínico. Queixara-se de “dor no peito “e a suspeita de síndrome coronário agudo tinha sido devidamente estudada. Mas estava tudo dentro dos parâmetros normais, e eu tinha desenhado um ponto de interrogação no diagnóstico e concluído laconicamente “a doente não tem nada”. No entanto, decorridos dois dias a D. Maria afirmava “Doutor, eu não ando nada bem”.
Seguiu-se um suspiro profundo e as lágrimas percorreram-lhe o rosto queimado pelo Sol. Eu bem que tentei controlar o meu embaraço enquanto oferecia uns lenços de papel. O choro, tímido, era o único som a interromper o silêncio. O compasso de espera — que me pareceu longuíssimo —antecedeu a torrente de frases em jeito confessional.
O desemprego do marido tinha sido o último evento de uma cascata que começara com a demência do pai que estava agora ao seu exclusivo cuidado. Enquanto o drama pessoal se ia desfiando, eu pensava em soluções. Algumas delas, saberia mais tarde, eram absolutamente impossíveis de concretizar. Mas o meu mestre nada disse por palavras. Comunicava com o rosto compreensivo, o olhar atento, os gestos de acolhimento. A D. Maria encerrou a consulta com um “Olhe estas horas! Tenho de ir preparar o almoço”. E já com um pé na soleira da porta ainda acrescentou: “Sabe, doutor, hoje saí daqui mais aliviada!”.
Eu fiquei siderado com esta exclamação. Parecia ter assistido a uma montanha russa emocional e confessei-o quando ficámos a sós. Ele sorriu, recostou-se na velha cadeira e, pacientemente, recordou-me a importância do contexto familiar e social. Afinal, a D. Maria que “não tinha nada” tinha tudo para se sentir vulnerável.
Volvidos mais de dez anos desde aquele episódio, passei de mero aprendiz a orientador de futuros médicos de família. Mais do que prelecções exaustivas, gostaria de ser capaz de, pelo menos, passar a mensagem do que aprendi naquele dia. Existe um fosso enorme entre ter uma doença e sentir-se doente. Perceber essa diferença é valorizar a relação terapêutica que se constrói mais na escuta do que na ilusão vistosa da tecnologia.