No princípio era o milagre português
A pandemia dura, o “milagre” não tanto, como é, de resto, apanágio de qualquer milagre. Somos, neste momento, os piores entre os piores do mundo no que concerne a indicadores covid-19. O que correu mal, então, com o “milagre português”?
No início da pandemia, fomos considerados exemplares. Em todos os indicadores epidemiológicos posicionámo-nos melhor que os países congéneres. Dávamos “lições” ao mundo no que concerne à resposta coletiva cívica e conscienciosa a que a todas as geografias era exigido. Jornais de referência como New York Times debruçaram-se sobre o nosso caso, apelidado, talvez por tão raramente nos destacarmos no panorama internacional, como o “milagre português”. Em Abril do ano passado, o jornal Alemão Der Spiegel dedicava uma reportagem a este “milagre”, pelo que destacou como sua causa central o medo (porventura, condição sine qua non a qualquer milagre). O medo fez os portugueses sair da rua.
O “milagre” que fez o Português sair da rua
Um artigo científico recentemente publicado analisa esta questão em particular. Mais precisamente, não o medo (uma emoção associada à parte mais primitiva do nosso cérebro), mas, ao invés, a auto-percepção de risco (uma espécie de medo informado, cognitivamente desenvolvido, com envolvimento das zonas mais sofisticadas do nosso cérebro). Com base nos resultados do Barómetro da ENSP-NOVA, foi analisada a perceção de risco da população portuguesa durante a primeira vaga da pandemia. Os resultados são inequívocos – sobretudo entre os mais vulneráveis (tanto pela idade, como pela presença de outras doenças), o risco que cada um julga ter de desenvolver complicações graves em caso de infeção pelo SARS-CoV-2 parecia corresponder ao risco real. Assim, este “medo” português não só se adequou ao que as circunstâncias impunham, como se ajustava à própria vulnerabilidade de cada um. A literatura científica diz-nos que a perceção de risco antecede o comportamento preventivo, ou seja, quanto mais julgarmos que estamos vulneráveis, maior será o nosso esforço para nos protegermos, nomeadamente sair da rua e ficar em casa o mais possível. Aqui está uma excelente justificação (não divina) para o nosso “milagre”.
O “milagre” não dura e o Português saiu à rua
A 13 de Março de 1964, uma moradora do bairro de Queens, em Nova Iorque, foi brutalmente assassinada por múltiplo esfaqueamento quando voltava do trabalho. Kitty Genovese, de 28 anos, estava na hora e local errados, numa altura em que a violência na cidade atingia proporções preocupantes. Mas não estava sozinha quando foi atacada. Diversos vizinhos testemunharam o crime sem, no entanto, tentarem impedi-lo. Apesar de, mais tarde, as circunstâncias exatas desse testemunho inoperante terem sido questionadas, o evento despoletou uma série de estudos na área da psicologia social, que ajudam a compreender o comportamento individual diante de um problema coletivo. Genericamente, numa emergência, a probabilidade de intervenção individual é tanto menor quanto maior o número de intervenientes. O outro que resolva. A este comportamento designou-se de síndrome de Genovese.
A pandemia dura, o “milagre” não tanto, como é, de resto, apanágio de qualquer milagre. Somos, neste momento, os piores entre os piores do mundo no que concerne a indicadores covid-19. Um inacreditável destacadíssimo primeiro lugar no número de novos casos por milhão de habitante (ao fim de Janeiro, 16 vezes superior à média mundial). O que correu mal, então, com o “milagre português”?
Tal como o que correu bem na primeira vaga pode ser o efeito de diversificados fatores, a presente calamidade é, com certeza, o resultado de muitas causas. Especialmente diante do frondoso desastre, muito poderá e deverá ser explorado sobre essas causas. Parece, desde já, haver um volte-face amiúde reportado sobre o comportamento preventivo de muitos portugueses. Permissão que gerou permissão, de mau exemplo em mau exemplo, bastava testemunhar pela janela. Talvez, tal como preconizado pela “teoria das janelas quebradas”, popularizada em torno do combate à violência em Nova Iorque nos anos 90, pequenos sinais de desordem (por exemplo, amena cavaqueira de grupos de pessoas sem respeito pela distância social) formem uma ladeira escorregadia que leva a mais e maiores elementos de desordem (por exemplo, aglomeração de grande número de pessoas em espaços interiores sem qualquer proteção).
Tudo foi, é claro, agravado pela nefasta desinformação alimentada pela horda de negacionistas que pululam nas redes sociais, mas também pela compreensível fadiga do confinamento, pelo receio da crise económica e, certamente, pelo stress sustentado de uma pandemia que se arrasta há já quase um ano. É conhecido pelos neurocientistas que o stress sustentado desencadeia mecanismos neurológicos que aumentam o egoísmo e prejudicam a avaliação de riscos no indivíduo. Evidentemente que nada disto ajuda. Sobretudo, parece que perdemos o tal “medo” que esteve na base do nosso “milagre”, ou simplesmente aprendemos a ignorá-lo. Suavizámos a guarda, passámos a enfrentar esta imensa provação com aquele nosso lado socialmente mais imberbe, que reivindica direitos sem chamar a si demasiadas incumbências. Aquele que espera que o outro resolva (entenda-se vizinho, Autoridades, especialistas, profissionais de saúde, o que seja..., o outro), que, no fundo, procura um certo Estado paternalista, que resolva todos os problemas, desde que, em contrapartida, não exija compromissos ou tribulações, como uma ceia de natal mais condicionada, por exemplo.
Talvez o medo básico individual se tenha dispersado em irresponsabilidade coletiva. No seu pior e à escala de um país inteiro, quiçá um género de síndrome de Genovese, em que, no seio desta calamidade, que requer uma intervenção individual contundente, quanto mais pessoas envolvidas (para o caso, todos nós), menor a probabilidade de cada um fazer o que lhe é devido. O outro que resolva. Suavizámos a autoiniciativa de termos um comportamento cívico exemplar e, assim, saímos à rua quando mais nos indicavam o contrário.
É importante continuarmos a tentar compreender o que correu bem na primeira vaga e o que sucedeu desde então. Para já, parece muito evidente que é importante, por um lado, deixarmos de acreditar em milagres e de embandeirar em arco quando as coisas nos correm bem, por outro, temos de repudiar continuamente a desinformação que nos chega, ouvirmos o que a ciência tem para dizer e retomarmos nas próprias mãos o dever que cada um tem para combater esta crise.
A intervenção de cada um de nós tem de ser contundente. Não é o outro, sou eu!
No princípio, foi o “milagre português”, agora tem de ser muito mais do que o habitual português suave.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico