A eutanásia de um país que sofre
É trágico que os deputados que elegemos para nos representarem tenham colocado na sua agenda de Janeiro, no mês em que mais portugueses morreram, a aprovação de um novo caminho para a morte.
Quando o país tem batido sucessivos recordes diários de óbitos – leia-se de “pessoas reais, de carne e osso, falecidas” – e também de novos infectados – leia-se de “pessoas como nós, contagiadas e infectadas” –, eis que a nossa Assembleia da República se apressa a despenalizar a eutanásia.
Podia ser cómico – humor negro, entenda-se –, se não fosse trágico… Mas é! É trágico que os deputados que elegemos para nos representarem, para serem a nossa voz perante os demais poderes, para promoverem os nossos interesses e o bem comum, para nos defenderem de erros e de negligências do governo, tenham colocado na sua agenda de Janeiro, no mês em que mais portugueses morreram, a aprovação de um novo caminho para a morte.
Podem dizer que fazia parte da agenda parlamentar, e fazia certamente; podem dizer que estava há muito previsto que assim fosse seguindo a cadência do processo legislativo parlamentar, e estava certamente. Mas devia ter havido sensibilidade perante a situação que vivemos, devia ter havido pudor. A oportunidade da decisão tomada, para além de qualquer juízo sobre o conteúdo da nova lei, é ofensiva. Ofende todos os doentes covid-19, desde os que estão em coma induzida nas unidades de cuidados de saúde sem se saber se alguma vez acordarão, até aos assintomáticos que passam os dias na angústia de terem infectado familiares ou amigos que venham a desenvolver as conhecidas formas severas da doença. Ofende todos os outros doentes também que correm o risco de uma morte prematura por incapacidade dos serviços de saúde os cuidarem de forma adequada e em tempo útil. Ofende todos os profissionais de saúde que há muito abdicaram da sua vida pessoal e familiar para se darem totalmente ao esforço de salvar a vida de quem precisa desesperadamente deles. Ofende todas as famílias que enterraram pessoas que amavam e de quem nunca se despediram. Estão de luto, como nós devíamos estar também de luto por todo o sofrimento que nos rodeia, agravado por falências e desemprego, empobrecimento e fome, por vidas que perderam o horizonte da esperança a cuja memória ainda se agarram e que nos compete a todos, cidadãos anónimos, ajudar a restaurar. Não, senhores deputados, vocês não ajudaram.
Não vale a pena dizer que a aprovação da designada morte assistida nada tem a ver com a ausência de assistência à vida de que o nosso país padece de forma ímpar. Lembro-me de um episódio em que, perante o desperdício alimentar, se afirmava que enquanto houvesse uma pessoa a morrer de fome no mundo ninguém tinha o direito de deitar comida no lixo. Ahhh – ouviu-se –, mas eu não posso ir dar a minha comida aos famintos. Pois não, mas podes respeitar o seu sofrimento, prezando aquilo de que carecem.
Esta despudorada aprovação da eutanásia é apenas o corolário, bem significativo, da arrogância política com que este processo foi gerido desde a anterior legislatura, a da “geringonça”, em que se instaurou o processo de negociação de valores por votos, entre o PS e o BE. A partir de então qualquer expressão da vontade dos cidadãos era inútil, senão mesmo um contratempo ou sobretudo um empecilho dos objectivos visados. Os pareceres dos especialistas foram negligenciados, porque, afinal, só interessam quando corroboram a decisão politica e não quando a contrariam, como aconteceu com a Ordem dos Médicos e o Conselho Nacional de Ética. Em relação à Ordem, o poder político nada podia fazer, para além de a ignorar, o que não é raro. Em relação ao Conselho de Ética votou-o à irrelevância, deixando-o terminar o mandato sem qualquer iniciativa para reactivá-lo. O Conselho poderia ter também uma palavra relevante no que se refere aos critérios de priorização na vacinação, mas também aqui importa mais defender a decisão política do que servir os cidadãos.
Este desfasamento entre os políticos e os cidadãos que deviam servir, paradigmaticamente assinalado com esta extemporânea aprovação da eutanásia, é a origem de muitos males que atingem a saúde da democracia, sem que alguém a queira eutanasiar – suponho.