Parceiros sociais: porque precisamos de sindicatos e associações patronais representativos

Sindicatos e associações patronais decidem salários e condições de trabalho através da negociação colectiva. Este papel de regulação do mercado de trabalho assenta no pressuposto de que são associações representativas. São-no de facto? O Projeto REP procura responder a esta e outras questões.

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Daniel Rocha

O Projeto REP-Representatividade dos Parceiros Sociais e o Impacto da Governança Económica, em que participam as autoras deste texto, liderado pelo ICS-ULisboa e financiado pela FCT (2018-21), está a estudar a representatividade de sindicatos e associações patronais. Para o efeito reuniu uma equipa multidisciplinar — composta por sociólogos, engenheiros informáticos e uma politóloga —, proveniente da Universidade de Lisboa, da Universidade de Coimbra e do ISCTE-IUL, e tem o apoio da DGERT [Direcção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho] e do Ministério do Trabalho.

A importância da representatividade

Como Arend Lijphart mostrou em Patterns of Democracy (1999), as democracias que promovem o consenso estão associadas a um melhor desempenho económico e bem-estar social. É neste quadro que dois grupos de interesses conquistaram um estatuto especial: sindicatos e associações patronais. Eles regulam hoje o mercado de trabalho através da negociação colectiva, determinando, conjunta e autonomamente, salários, férias, carreiras e outras condições de trabalho. Além disso, em muitos países, confederações sindicais e patronais usufruem do estatuto de parceiro social, ao estabelecerem com o Governo compromissos sobre políticas sociais na concertação social.

O caminho foi longo e muitas vezes violento até se institucionalizar este estatuto. Ao longo do século XIX, a união dos trabalhadores em protesto contra as condições desumanas levou à formação dos sindicatos e estimulou a própria organização do patronato em associações. Pouco a pouco, normalizou-se o diálogo entre ambos e promoveu-se a chamada “paz social”. Quando, em 1949, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicou o direito à organização e negociação colectiva, na Convenção C098, consagrou o reconhecimento do estatuto especial destas associações. 

Entretanto, o diálogo social generalizou-se e encontra-se hoje ao nível das empresas, dos sectores económicos, dos países e globalmente. A União Europeia (UE), por exemplo, proclama a possibilidade de serem assinados acordos bilaterais no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (Artigo 155). É, pois, neste quadro que se celebra o Acordo Quadro sobre Digitalização dos Parceiros Sociais Europeus (2020), ou que estão activos mais de 40 comités sectoriais europeus.

Como se tem avaliado a representatividade?

A legitimidade do estatuto especial de sindicatos e associações patronais advém da função de representação. Quer a literatura sobre relações laborais, quer os próprios actores sociais (agências governamentais, parceiros sociais, entre outros) fazem corresponder a representatividade à existência de membros num determinado sector ou empresa.

O indicador mais usado é o número de membros face ao número total de potenciais membros, a chamada “densidade”. O número de membros é uma questão particularmente sensível para os sindicatos, pois, como Offe e Wiesenthal mostraram, em 1980, apesar de se tratar, em ambos os casos, de associações, estamos perante duas lógicas de acção colectiva. Enquanto os trabalhadores só têm forma de ser ouvidos associando-se e, consequentemente, exercendo pressão através da greve, o patronato exerce ainda a sua influência na empresa e junto do poder político.

Aferir a representatividade apenas com base nos membros tem, no entanto, limitações que é preciso não esquecer. Primeiro, a qualidade desta informação é, genericamente, fraca. As fontes de informação sobre o número de membros são díspares e pouco fidedignas, não tendo, por exemplo, dados actualizados e incluindo membros que não pagam quotas. Segundo, o uso da densidade como indicador privilegiado da representatividade é claramente insuficiente para dar conta dos interesses em jogo. De que interesses falamos ao certo no caso dos sindicatos: dos interesses dos trabalhadores do sexo masculino, dos interesses dos trabalhadores mais velhos? No caso das associações patronais: são interesses de grandes empresas e de PME? E como são auscultados esses interesses pelos representantes eleitos destas associações?

Que sistemas existem?

Ainda que o número de membros seja informação privilegiada, existem vários outros sistemas de aferição de representatividade. Em 2016, pela primeira vez, é conhecido o panorama da representatividade de sindicatos e associações patronais na UE. O relatório The Concept of Representativeness at National, International and European Level, da Eurofound, mostra que o sistema prevalecente é o mútuo reconhecimento. Isto significa que, na maioria dos casos, existem critérios informais e subjectivos que determinam se um sindicato ou associação patronal é ou não considerado representativo e, portanto, elegível para o diálogo. Na prática, o panorama é complexo, pois muitos países combinam critérios informais e formais, quantitativos e qualitativos. A Europa está longe de convergir.

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Repensar os critérios

A OIT há muito que defende a necessidade de critérios de representatividade precisos, objectivos e pré-estabelecidos para evitar a parcialidade e o abuso. Mas estabelecer estes critérios para aferir a representatividade não é fácil, porque interfere com a autonomia das associações e pode inviabilizar a acção colectiva. Isto sucedeu, de resto, no Reino Unido com Margaret Thatcher aquando da imposição administrativa de um acto eleitoral para se decidir uma greve. Uma percentagem mínima de votos a favor da greve passou a ser exigida para ser legal. Esta medida governamental, ainda hoje em vigor, contribuiu para a queda acentuada das greves naquele país. Ao mesmo tempo, se não houver uma medida que se aplique a todas as associações, está-se a contribuir para um sistema pouco democrático e ineficiente.

A literatura sobre relações laborais refere muitas vezes que a representatividade é uma das dimensões da crise do sindicalismo, na medida em que os sindicatos tendem a representar os homens, mais velhos, com contratos permanentes, quando hoje é preciso dar voz aos trabalhadores precários, em crescimento e diversificação. Porém, são escassos os estudos sobre representatividade de sindicatos e associações patronais.

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O ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Vieira da Silva, acompanhado pelo secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro, pelo secretário de Estado do Emprego, Miguel Cabrita, durante a reunião plenária da Comissão Permanente de Concertação Social, na sede do CES em Lisboa, 24 de Julho de 2018 Tiago Petinga/Lusa

A ciência política, pelo contrário, reflecte há décadas sobre o tema a partir da obra The Concept of Representation (1967), de Hanna F. Pitkin. Nesta obra, a representação é um conceito multifacetado com quatro dimensões: descritiva (quem está a ser representado?), substantiva (que respostas são dadas pelos representantes aos representados?), simbólica (os representantes são símbolos?) e formal (quais os procedimentos formais para a selecção dos representantes?). Esta literatura não é alheia, por exemplo, à criação de quotas de género em parlamentos nacionais, medida estendida recentemente a grandes empresas. A presença proporcional de homens e mulheres, ou seja, o aprofundamento da dimensão descritiva da representação, parece constituir para muitos autores e decisores políticos um primeiro passo para uma representação democrática mais efectiva.

Consequências da falta de representatividade

As consequências da existência de sindicatos e associações patronais pouco representativos são múltiplas. Salientamos duas: o impacto na economia, na medida em que, por exemplo, a negociação colectiva celebrada por organizações pouco representativas pode não ser totalmente implementada no terreno, levando à concorrência desleal; e a perda de credibilidade dos actores sociais, sempre que associações não representativas celebram acordos em detrimento de associações representativas, dando azo à emergência de protestos por actores não institucionais.

O caso dos sindicatos da Polícia de Segurança Pública (PSP) impôs-se como objecto de estudo incontornável no projecto REP. Este caso confirmou-se como paradigmático do desvirtuamento do nosso sistema e mostrou que o enfraquecimento das instituições favorece protestos por actores não institucionais. Portugal foi dos últimos países europeus a permitir sindicatos de polícia após uma luta de décadas, marcada pelo célebre “Secos e Molhados” de 1989.

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Sede do Sindicato Unificado de Polícia de Segurança Pública (SUP) durante um encontro de sindicatos de polícias, em Outubro de 2012 Daniel Rocha

A Lei n.º14/2002 veio, enfim, reconhecer um direito que, por exemplo, os australianos tinham há cerca de um século. A configuração da lei abriu, no entanto, caminho à proliferação sindical, ao ponto de existirem 19 associações sindicais da PSP em 2019. Esta fragmentação revelou-se um problema, porque a proliferação se deveu mais a motivações subjectivas — e até egoístas — do que à co-existência de interesses diversos (categorias profissionais ou localidades diferentes). Além disso, as estruturas federativas não funcionaram. A acção sindical perdeu força com a fragmentação, como mostra o nosso artigo na revista Análise Social, que será publicado em Março de 2021. Se “são precisos dois para se dançar o tango” e não se pode resumir a falha do diálogo social entre as associações sindicais da PSP e a tutela à fragmentação sindical, também parece claro que associações com estas características não favorecem o consenso.

O debate em Portugal

A representatividade é referida pelos próprios actores sociais portugueses como um problema, mas não houve ainda uma tomada de posição conjunta sobre ela ou uma iniciativa de revisão da sua aferição. Possivelmente o sistema do mútuo reconhecimento ainda permite a manutenção estratégica do poder por quem o detém, sobretudo em tempos de perda de membros.

Alguns estudiosos portugueses das relações laborais dedicaram atenção à questão. Destacamos o texto de Henrique Sousa “Sindicalização: a vida por detrás das estatísticas” (2011) e uma polémica que opôs Cerdeira e Padilha a Stoleroff e Naumann, nos anos 90, a propósito da fonte fidedigna do número de membros dos sindicatos.

Mais de 20 anos depois, continua a não ser fácil saber, com rigor, quantos membros as associações sindicais têm, ou sequer quantos sindicatos e associações patronais existem em Portugal. Neste sentido, o projecto REP está a criar uma base de dados dos sindicatos e associações patronais a ser disponibilizada no website da DGERT, em 2021, com informação pública, mas até agora dispersa.

Ao sistematizar esta informação e facilitar a sua utilização por todos os interessados, espera-se contribuir para o empoderamento dos actores sociais e para novos estudos.


Sociólogas, ICS-ULisboa


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