Liberdade de expressão: um princípio nem sempre fácil de compreender
Estará a liberdade de expressão em perigo? Não creio. É claro que assistimos a muitos excessos. Como tudo o mais, o discurso de ódio tem hoje um potencial de difusão sem precedentes, pelo que há que saber encontrar os mecanismos próprios para combater a sua difusão.
Em Portugal, temos a sorte de viver em democracia. E um dos princípios basilares de qualquer democracia é a liberdade de expressão. Diz-nos a Constituição que todas as pessoas têm “o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de se informar, sem impedimentos nem discriminações”. Mas o que é que isto significa?
A primeira imagem que me ocorre é a do speaker’s corner, no Hyde Park, em Londres: um recanto onde qualquer pessoa pode discursar até se cansar. Ora, a liberdade de expressão não confere a ninguém o direito a qualquer outro pódio.
Os meios de comunicação social, e outros meios suscetíveis de amplificar a nossa mensagem, devem ter – e em geral têm – os seus critérios editoriais. Sempre que se convida alguém para falar ou publicar num qualquer meio, por mais que se afirme que não se concorda com as suas ideias e que apenas se quer promover o debate, ouvindo todos os pontos de vista, a mensagem que passa é de que essas ideias merecem ser escutadas. Tão dignas de palco que, naquele dia e àquela hora, foram as eleitas pela curadoria desse espaço de entre os milhares de outras que poderiam ser lidas ou escutadas.
Defender que há ideias demasiado ignóbeis (como a supremacia branca) ou patetas (como o terraplanismo) para lhes ser dada uma oportunidade de difusão nacional não é censura, não é um ataque à liberdade de expressão. Torna-se evidente que uma das principais guerras do século XXI será o combate à desinformação.
Sucede, porém, que nos dias que correm cada vez mais gente tem acesso ao megafone das redes sociais. Estas permitem que qualquer pessoa difunda, por vezes amplamente, a sua mensagem. De repente, toda a gente tem voz e essa voz consegue fazer-se ouvir com estrondo no espaço público. É uma nova realidade causadora de ondas de choque, sobretudo nos grupos sociais que anteriormente controlavam o acesso ao espaço público. Antes botavam faladura e já estava. Agora, pasme-se, sujeitam-se a ser alvo de críticas. As reações não se fazem tardar: socorro, que me censuram! Ai que já não se pode dizer nada. Parem tudo, que aí vem a polícia do politicamente correto.
Estará a liberdade de expressão em perigo? Não creio. Aquilo a que assistimos hoje é ao exercício de liberdade de expressão numa sociedade felizmente cada vez mais plural e inclusiva, com um acesso generalizado ao lugar da fala – o que aborrece muito quem se habituou a falar sem contraditório.
É claro que assistimos a muitos excessos. Como tudo o mais, o discurso de ódio tem hoje um potencial de difusão sem precedentes, pelo que há que saber encontrar os mecanismos próprios para combater a sua difusão, que incide de forma muito desproporcional sobre as categorias historicamente mais fragilizadas, pondo a nu o pior que a nossa sociedade ainda tem de racismo estrutural, homofobia e misoginia.
Fora tais excessos, haja a decência de reconhecer que a censura social de que hoje, muitas vezes, se é alvo está muito longe da verdadeira censura, felizmente proscrita. Tão fora ela está do nosso imaginário coletivo que ninguém parece corar de vergonha ao assimilar as críticas que agora são feitas aos tempos, não muito longínquos, em que quem defendia a liberdade arriscava a prisão e a morte.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico
Margarida Lima Rego
Professora da NOVA School of Law