Reputação, transparência fiscal e os desafios contemporâneos

Não nos iludamos: enfrentamos perigos reais. E para os enfrentar não há melhor alternativa do que pugnar pela justiça fiscal aplicada de modo equitativo ao conjunto da sociedade.

O tempo que vivemos responsabiliza-nos em face dos desafios contemporâneos, em especial pelo fio condutor passado-presente-futuro que consentiremos. Os desafios contemporâneos podem destilar-se afirmando que são reais as ameaças colocadas pelo devir social à ordem pública baseada nos direitos humanos, na democracia representativa enraízada nas liberdades cívicas e no império da lei.

É uma evidência que no mundo reemergiu a desconfiança entre povos, a radicalização, o populismo, a discriminação, o ódio racial, o anti-semitismo, a economia ilegal e os fluxos financeiros ilícitos, a exacerbação dos nacionalismos, dos autoritarismos, do terrorismo e das migrações. Ironia esgrouviada por estarmos num tempo em que, inegavelmente, os avanços tecnológicos e científicos favoreceram a Humanidade com melhoramentos que possibilitam ir mais além. Assim aspire o ser humano e disponha de liberdade.

Paulatinamente deixou-se encorpar uma sociabilidade hedonista e solipsista, avessa à ligação homem-cultura-ambiente. Causa, entre outras, de um desiquilíbrio que favoreceu a desvalorização da sabedoria, a emergência climática, a intolerância ao outro, a desumanização do quotidiano, a invasão do homo sapiens pelo homo economicus que determinou a modelação do ser humano a uma unidade de produção e consumo, a prevalência do consumidor sobre a dignidade da pessoa e do cidadão, a homogeneização da personalidade e do gosto. Favorecendo também uma tendência de anestesia crítica e de alienação da memória que certificou o triunfo do yes man, do seu fiel aio: o Power point, amplificada por um ambiente comunicacional baseado no ciberespaço, no qual a caligrafia cedeu lugar à font, a métrica do tráfego no sítio impôs-se à qualidade do conteúdo, mesmo para distinguir o verdadeiro do falso.

Tudo isto é intensificado por novas realidades como a dark net ou a blockchain que entreabriu a alteração estrutural do sistema de trocas e de pagamentos, em especial uma dinâmica de descentralização, na qual as criptmoedas desafiam as moedas fiat, criam novas formas de anonimato, num fundo de generalizada ciber-ignorância na arbitragem entre o mundo físico e o digital, no qual campeiam meios como o big data, a inteligência artificial, a weaponization of information, o behavioural targeting e o cibercrime que viabilizam o controlo da mente sem vinculação ética ou legal aos direitos humanos, incluindo para fins de lucro, eleitorais ou de vigilância e repressão das liberdades.

Foi neste mundo revolto em que a rua acolhia os coletes amarelos e a marcha das sextas-feiras, que eclodiu a pandemia. A incerteza sobre o seu impacto é espessa, mas existem alguns pontos de referência estáveis sobre o horizonte de curto-médio prazo. Destaco três. Um é o empobrecimento das sociedades, o aprofundamento das desigualdades entre países, regiões, setores económicos e sociais. Um segundo é que a ênfase na sociedade digital é redutora do desenvolvimento socioeconómico até porque o analógico e o quântico são indispensáveis à criação de valor de que a nanotecnologia é um exemplo. O terceiro é que o fôlego do Estado de direito democrático depende da recuperação socio-económica próspera e inclusiva, sem o que existe o perigo de minar a sua autoridade e favorecer a emergência de novos fascismos, manifestamente no horizonte da Europa. Faço notar que a democracia surgiu na Grécia Antiga, mas esteve quase sempre ausente durante dois mil anos até que o séc. XX a revigorou no pós II Guerra Mundial, e que na segunda década do séc. XXI o Capitólio foi invadido pela barbárie, a UE abriu procedimento contra a Hungria e a Polónia devido ao risco manifesto de violação dos valores da UE, a extrema-direita medra, incluindo em Portugal, e na cena mundial consolidou-se uma dinâmica geo-política com centro em potências comerciais e militares autoritárias.

Perante este panorama a política fiscal e o imposto assumem, a meu ver, uma importância sem precedentes para a coesão e justiça social convidando a uma reflexão serena e informada, sem temor de enfrentar a narrativa prevalecente, tantas vezes o resultado de estratagemas urdidos por interesses egoístas. Relembro que o imposto é um instrumento de liberdade, propriedade e solidariedade, que entre as suas aptidões está propiciar receitas para a despesa pública, isto é assegurar a satisfação das necessidades coletivas (por exemplo de saúde, educação, defesa e segurança), promover a(re)distribuição de recursos entre Estado e sociedade, operar a estabilização da economia, atuando sobre desemprego, inflação, taxas de câmbio, investimento, etc. Assim como incentivar a alteração de comportamentos individuais ou coletivos, por exemplo o impacto no ambiente.

Fruto de um trabalho civilizacional que deita raízes na Magna Carta dispomos hoje da garantia constitucional da autotributação, isto é dizer os impostos que pagamos são votados anualmente pelos representantes eleitos pelo povo em eleições livres, que definem, com sujeição à lei e aos tribunais, a tributação vinculada à capacidade contributiva, incluindo como especificada na fórmula de progressividade.

A fraude e a evasão fiscal são por isso fenómenos subversivos deste acervo civilizacional e da autoridade da ordem pública democrática. Erodem as receitas tributárias, minam a perceção de (in)justiça e coesão social do esforço fiscal e da igualdade perante a lei, lesam a sã concorrência afetando a eficiência na alocação de recursos de que depende a maximização do crescimento económico e da criação de emprego, tanto quanto a sua aceitação social manifesta a desaprovação do Estado, a difusão da impunidade e da sensação de que o crime compensa, oxigenando assim sentimentos de revolta e derivas populistas.

A aspiração por uma nova cidadania económico-financeira centrada na sustentabilidade financeira, cuja ênfase é a recuperação da confiança, foi um dos efeitos positivos da crise de 2007-2008. Isto desencadeou um processo de transformação cultural e institucional que favoreceu a valorização social da interligação entre liderança, responsabilidade e integridade, ou seja a importância de os decisores atuarem de modo responsável, com relevância crescente da responsabilidade social em matéria tributária. Favoreceu igualmente a formação de um consenso internacional em torno da importância da transparência fiscal como instrumento de políticas e regulação.

Este consenso originou uma cooperação internacional e europeia centrada na agenda Fair Taxation, de acordo com a qual cada um deve pagar o imposto justo no local e tempo devidos. Inegavelmente foram realizados progressos que muitos tinham por impensáveis como o fim do sigilo bancário e fiduciário para efeitos fiscais ou a identificação do beneficiário efetivo, forçando por exemplo à capitulação do regime do anonimato suíço. É também de sublinhar uma lógica de vasos comunicantes entre a fiscalidade e a promoção da estabilidade e integridade dos mercados e da segurança nacional, em especial a luta contra o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo.

O êxito destes progressos é verificável nos dados divulgados pelo Secretário Geral da OCDE, em fevereiro de 2021, e que são como se seguem: “A little over ten years after the Global Financial Crisis, EUR 107 billion of additional revenues (tax, interest, penalties) have been identified; bank deposits in international financial centres have fallen by USD 410 billion over the past decade; and 36,000 exchanges of tax rulings have been shared between jurisdictions. Furthermore, information on 84 million financial accounts were exchanged in 2019 with a total value of around EUR 10 trillion”.

É justo evidenciar que a UE afirmou um papel de liderança mundial na luta contra a evasão fiscal, ainda sem o devido reconhecimento público. Uma clara prioridade é agora a tributação do lucro das ditas empresas tecnológicas, bem como a ampliação de uma nova geração de normas anti-evasão fiscal, com a finalidade que as empresas e os supericos sejam tributados no local em que são gerados os seus lucros ou rendimentos, e neutralizados os desvios artificiais de lucros ou rendimentos através da utilização de zonas de nula ou baixa tributação ou jurisdições não-cooperantes, ditos de offshores, ou em plataformas digitais. Outra prioridade é a luta contra os profissionais que favorecem o crime fiscal ou o crime dito de colarinho branco. Confirmando de igual passo que a tributação é fundamental para religar os cidadãos à UE e reprimir a impunidade e afirmar a igualdade de todos perante a lei.

Uma força adjuvante desta luta adveio dos avanços tecnológicos e consistiu na emergência de um novo ambiente comunicacional baseado no ciberespaço, em especial nas redes sociais e nas plataformas online, que desencadeou um efeito da maior importância: a afirmação da reputação como new commodity. Vivemos já no que venho designando por economia reputacional, na qual o capital reputacional é o atributo fundamental da licença social/vantagem comparativa de uma instituição ou personalidade. Por esta razão uma conduta fiscal, mesmo que não seja ilegal pode ser vista na comunidade como reprovável isto é Legal but not Fair, e originar uma espiral de quebra de confiança, e retirar à instituição ou à personalidade a licença social respectiva.

Destaco que é nisto que consiste a afirmação do imposto como fonte de risco reputacional, cujo teste da realidade é autoexplicativo, bastando referir os casos Offshore Leaks, Panama Papers e Swiss Leaks, além de tantos outros, posto que confirmam que a evasão fiscal e o branqueamento são agora fortemente punidos na legislação, nos tribunais, incluindo com prisão efetiva, e hostilizados nas relações sociais e critérios editoriais por uma censura emocional com reflexos que podem ser muito severos nas atitudes, e originar danos reputacionais irreversíveis, até porque na era das redes sociais o direito de defesa parecer ser uma quimera, o que é algo que nos deve preocupar e sinalizo sem desenvolver nesta oportunidade.

Faço notar que o não pagamento do imposto devido é agora entendido não apenas como uma ofensa do dever individual de suportar o esforço fiscal correspondente à capacidade contributiva, mas também como uma ofensa grave contra a sociedade como um todo, contra o dever de solidariedade de participar nos custos de financiamento da comunidade e contra o dever de cumprir as normas jurídicas aplicáveis. Acresce que o sentimento de impunidade/injustiça decorrente do não cumprimento de obrigações legais, o qual se agrava quando envolve as altas e poderosas esferas, em contraste com a tragédia do cidadão sem emprego ou proibido de trabalhar e sujeito a um IRS/IRC asfixiante, coloca em perigo a reputação/licença social da ordem pública democrática e do sistema fiscal, posto que os impostos continuam a ser devidos, mesmo nos setores em que a fonte de rendimento não existe por causa da pandemia, não sendo de admirar que venham a emergir descontentamentos e sentimentos de revolta que vão no engodo de soluções populistas. Tanto mais quando estão na ordem do dia casos de colossos empresariais e supericos de áreas favorecidas pela pandemia como a tecnológica, farmacêutica, energia, finança, que beneficiam das infra-estruturas dos países, pagas pelos contribuintes, sem que os seus lucros, rendimentos ou operações, em muitos casos, sejam tributados. Situações que não hesito em qualificar como sendo pirataria fiscal.

A mensagem de fundo da evolução social é clara: o laissez-faire fiscal perdeu licença social, em especial a mentalidade de acordo com a qual minimizar o imposto é maximizar o valor accionista ou que “that makes me smart” como Donald Trump tergiversou ao ser confrontado com o facto de em 2016 ter pago USD 750 de imposto federal sobre o rendimento. Hoje o aventurar do cenário “Não é proibido posso fazer?” desafia os decisores a perfilharem uma cultura de virtú fiscal. Ou como prefiro afirmar: a reputação deve prevalecer sobre o lucro.

Ao contrário do que possa parecer, existem exemplos de utilíssimo efeito pedagógico em especial para o cidadão cumpridor. Um é dado pelo Norges Bank, fundo soberano da Noruega, o maior do mundo, que anunciou recentemente que desinvestiu em 7 empresas, devido a planificação fiscal agressiva e a casos de não divulgação da informação, sobre onde e como pagam os impostos. Outros exemplos são a punição das irregularidades fiscais do Rei emérito Juan Carlos, de galáticos do desporto, como Hamilton, Ronaldo e Messi, ou do ex-primeiro-ministro francês, Raymond Barre, devido aos dinheiros não declarados na Suíça. Comprovou-se assim que o braço da lei chega a todo o lado e que nada nem ninguém está acima da lei, incluindo a da morte natural. Comprovou-se ainda a vitalidade da ordem pública democrática, das instituições, da eficiência das autoridades, em especial da UE, e da imprensa livre.

Estes são sinais encorajadores, mas não tenhamos dúvidas que esta trajetória está longe de estar consolidada e enfrenta ameaças. A pandemia fará crescer a economia paralela, potenciando a reversão dos progressos obtidos nos últimos anos no retirar a licença social à evasão fiscal, assim como poderá oxigenar populismos e hostilidade à ordem pública democrática com fundamento na desaprovação do sistema fiscal e do Estado. A consolidação desta trajetória dependerá principalmente da autoridade do Estado, no que será decisivo a perceção pública sobre a eficácia do apoio público à recuperação da situação desencadeada pela pandemia. Para isto é essencial que o financiamento do défice orçamental fique principalmente a cargo da política monetária, tendo em conta a sua colossal grandeza. A não ser assim inviabilizar-se-á uma evolução justa e eficiente do esforço fiscal sobre os cidadãos, em especial na repartição dos custos da pandemia. Igualmente será decisivo a tributação efetiva dos grandes contribuintes e supericos e a punição dos faltosos, assim como a articulação do sistema fiscal com a qualidade da despesa pública e da dívida pública, em particular do pagamento pontual pelo Estado, da transparência da informação da execução orçamental (por ex., de modo a impedir a socialização de custos privados com recursos públicos, ou a maximização de lucros privados por via de despesa fiscal coberta por fins sociais sem justificação real), da luta contra o crime económico, e da integridade do processo social, em particular da repressão efetiva do nepotismo e da corrupção, e do acesso ao direito, aos tribunais, em especial da resolução da morosidade judicial.

Faço notar que a evidência das anomalias a que aludi gera no contribuinte cumpridor uma justificada repugnância ao cumprimento dos deveres fiscais e ao status quo. Nas atuais circunstâncias históricas a massificação desta repugnância coloca em causa a democracia e a liberdade. Afigura-se-me assim que o caminho não é o de nos enfraquecermos no muito português “ou há moralidade ou comem todos”. É sim o de nos fortalecermos mobilizando a sociedade para uma maior exigência quanto à relação administração e administrados, em especial na esfera das finanças públicas, de modo a que de facto e no concreto se crie aquilo que é a sua razão de ser.

Não nos iludamos: enfrentamos perigos reais. E para os enfrentar não há melhor alternativa do que pugnar pela justiça fiscal aplicada de modo equitativo ao conjunto da sociedade, demonstrando perante todos, que todos pagam em função da capacidade contributiva, que nada nem ninguém está acima da lei e que o crime não compensa. Sendo urgente nortear os avanços com realismo e ancorá-los na solidariedade, posto que a situação desencadeada pela pandemia a tornou ainda mais premente. Vir dizer depois que se subestimaram os perigos poderá ser tarde demais e porventura cobardia. Até porque há dinâmicas que não batem à porta para entrar, legitimadas por terem dado sinais de que viriam. Como ensina a história esta é uma daquelas situações que se sabe que pode acontecer, mas quando acontece, as sociedades habitualmente são apanhadas de surpresa.

Manifestamente o que estava posto antes da pandemia, não estava bem. Com todas as suas misérias e dores, a pandemia, ofereceu-nos a oportunidade de construirmos uma sociedade mais harmoniosa, solidária e justa. A edificação desta oportunidade numa realidade, não tombará do acaso. Resultará do esclarecimento e do empenho de cada um. No que é antes de mais um exercício de livre arbítrio individual e de responsabilidade social, no qual a tributação tem uma função essencial.

A tributação vigente dirige-se ao indivíduo no seu tempo, interpelando-o na escolha entre as formas alternativas de organizar a sociedade e de estar em sociedade, influencia em especial a criação de emprego e o rendimento disponível, e deste modo o quotidiano e a vivência de todos e de cada um.

Ninguém se pode apresentar a fruir sem contribuir na medida da sua capacidade contributiva, e por assim entender, advogo que praticar e dar a conhecer uma cultura fiscal estruturada na reputação e na transparência é um ato indispensável para superar os desafios contemporâneos a que aludi, desde que com respeito pela privacidade legítima e a dignidade humana - no que é essencial o escrúpulo democrático contra o acesso indevido de dados, incluindo pessoais e do seu processamento -, e da efetividade do direito de defesa.

Na certeza de que só valemos pelo que deixamos aos outros, esta cultura fiscal, depende antes de mais do estaleiro quotidiano da sociedade em que nos integramos. Na afirmação do propósito de trabalhar em conjunto, num espírito construtivo, de confiança, de cooperação recíproca e boa-fé, sem o que não logrará consequência efetiva, posto que só a força do exemplo dado por pessoas e instituições públicas, privadas e do terceiro setor que são vistos como referências na comunidade, poderá gerar uma dinâmica de consentimento e adesão fiscal pelo conjunto da sociedade. Deste modo, abrir-se-á caminho à ordem pública justa e próspera que é o melhor factor de promoção de uma moral social respeitadora da diferença vinculada à promoção da liberdade individual e da interligação homem-cultura-ambiente na edificação de bem-estar social. Dito de modo breve: é uma ato de cidadania dedicado à regeneração da democracia e do fortalecimento da liberdade. Lastro de esperança no futuro.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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