A lei é a lei
Despedir tornou-se um verbo barato e nunca se pedem responsabilidades a quem o decide. Quem despede nunca é despedido.
Quanto mais se aproxima o 25 de Abril, mais nos questionamos sobre aquilo que Portugal é ou em que se transformou ao longo dos anos de democracia sob diferentes governações. Um país que está a anos-luz de distância da miséria, do bafio, do obscurantismo, de gritantes desigualdades, do peso asfixiante do analfabetismo, de infra-estruturas desgraçadas ou inexistentes, da inexistência das mais elementares formas de liberdade a que a ditadura condenou Portugal durante uma noite que durou 48 anos.
No pequeno-grande Os Filhos da Madrugada, programa que Anabela Mota Ribeiro criou e conduz na RTP3 com a mestria habitual, Mariana Mortágua proferiu uma frase que deveria estar emoldurada: “A liberdade só é boa quando é uma escolha individual.” Reparem que não se trata aqui de fazermos o que queremos e quando queremos — o que está no centro desta frase é que seja uma opção de cada um e não produto de uma série de constrangimentos e condicionalismos.
Mas, depois, a realidade que encontramos no dia-a-dia confronta-nos com uma série de questões. Escolhemos ser pobres ou outros escolhem por nós? Não me parece que ser pobre seja uma escolha individual, pelo contrário, é, demasiadas vezes, uma condição para a qual se é empurrado com base em diferentes discriminações ao longo da vida. É nossa a escolha de salários baixos e indignos, independentemente do grau de formação ou do tempo de experiência que se tem? Não, essas condições foram criadas ao longo do tempo, pela conjugação de diferentes factores e nunca em nome do 25 de Abril — cedências constantes do poder político ao poder económico e financeiro, proletarização das profissões, generalizada precariedade. Sempre com a complacência de quem faz as leis e defende que o ideal é facilitar os despedimentos ou, como se diz em linguagem moderna, “flexibilizar”.
E o quadro só se agravou por acção de quem (des)governou e agora anda a fintar tribunais, deixando-nos a nefasta herança da passagem da troika, mas também daquele cujo nome me escuso a mencionar e que não se cansou de dizer que “vivemos acima das nossas possibilidades”. Esperemos que nunca mais regresse à política: mais do que não lhe fazer falta, é alguém que tem tanta utilidade para os portugueses como submarinos que não saem do fundo do mar.
Integramos listas de despedimentos porque queremos ou porque outros assim o decidem? Basta participar no mercado de trabalho e passar por algumas empresas para dispor da resposta: quanto mais se disser que sim a tudo ou se encolher os ombros com aquilo que se passa à nossa volta mais longe se estará da porta da rua.
Entretanto, está aí mais um despedimento de dezenas de pessoas na Cofina. Sinto-me à vontade para abordar o tema, porque trabalhei nesse grupo e estava lá quando decidiram fazer o primeiro. Quem partilhou esse tempo comigo sabe o que disse no plenário de redacção e como a resposta colectiva não correspondeu ao que defendi. Pelo meu próprio pé, exercendo a tal escolha individual de que falou Mariana Mortágua no programa já referido, fui trabalhar para outra empresa. Cheguei a estar noutro país. À distância no espaço, mas sempre próximo em solidariedade, observei como outros despedimentos se têm seguido. Sem surpresa, infelizmente. Porque despedir tornou-se um verbo barato e nunca se pedem responsabilidades a quem o decide. Quem despede nunca é despedido. E já nem contribuir para gerar lucros serve como protecção. Mais: quem agora despede não se coíbe de estender a mão aos apoios do Estado. E depressa voltará a contratar por valores mais baixos. Porque não há impedimentos a que isso aconteça. No fundo, tudo se resume ao que disse o primeiro-ministro: “A lei é a lei.”