Do acolhimento residencial ao familiar na minha voz

Para mim a ideia de viver em família era como se vê em novelas ou filmes, mas não me passava pela cabeça que teria essa ou outra. Não sentia que era uma oportunidade minha.

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Tenho 16 anos, estou em acolhimento familiar e é esta a minha história.

Aos três anos, eu e os meus irmãos fomos retirados aos nossos pais. Fui nessa altura colocada em acolhimento residencial. Como foi? Torna-nos diferentes. Não nos devia fazer diferentes a ponto de exclusão, mas aconteceu. Não é só o estar em acolhimento residencial em si, mas também a visão que se tem de nós.

Somos os rebeldes, com problemas, coitadinhos, os tem lá cuidado com aquele/a, já se sabia que as notas não podiam ser boas, foi ele/a ao certo que fez e causou porque meninos/as de boas famílias não fariam, não é? Com o passar dos anos percebo melhor os convites que não tive e os rumores que iam estando presentes. Era um mundo pequeno e limitado, separada dos outros por algo que me distinguia. Parecia que tinha os mesmos direitos, mas não os tinha.

Na “instituição” também ninguém era igual. A uns os pais visitavam, a outros não, e a alguns as promessas eram cumpridas e a outros não. Chegavam uns e partiam outros num tipo de apegar e desapegar. Aos fins-de-semana lá ia a carrinha do centro distribuindo-nos por familiares e íamos vivendo o “mundo real” no qual uns se sentiam amados, outros que eram imposições e obrigações, e lá dávamos entrada de novo no centro para o jantar de domingo. Tínhamos uma ida periódica ao supermercado para aprender a comprar coisas. Penso que todos davam o seu melhor, mas era pouco. Acabei por crescer durante sete anos em rotinas de grupo, faltando-me o direito à família que a lei promete.

Para mim a ideia de viver em família era como se vê em novelas ou filmes, mas não me passava pela cabeça que teria essa ou outra. Não sentia que era uma oportunidade minha. Os adultos também pareciam não ter ideia da realidade, acreditando ano após ano que tudo ia ficar bem na família biológica. Talvez até fique tudo bem, mas não entendo por que nos retiram o meio. Decidiram dar-me o meio aos dez anos quando fui para acolhimento familiar. Mesmo sendo temporária, a família de acolhimento dá-nos normalidade. E se há algo que me surpreende é o quanto queria isso.

Ir para uma família de acolhimento não é um conto de fadas, mas há um dia-a-dia de apego, estabilidade e individualidade. Temos um núcleo que nos ensina como nos comportarmos em diferentes ambientes e com diferentes pessoas, que nos prepara para dificuldades e para o futuro. Há alguém que se senta connosco e nos obriga a estudar, e se isto nos parece horrível nos primeiros tempos, já não o é quando finalmente percebemos a matéria, quando já não somos o repetente ou aquele que fica sempre de lado e que nunca sabe nada, aquele de quem se goza quando se vai ao quadro.

Lembro-me, porém, dos momentos em que estava orgulhosa de estar em acolhimento familiar, mas que mesmo assim ainda era “olhada de lado” pelos meus colegas. As ideias estão trocadas na cabeça de muitos... Comecei a usar “mãe” só para me sentir encaixada. Convites para aniversários aconteceram no meio de traições de amigos a quem fui contando a minha vida; assim que havia alguma situação diferente do normal na escola, o dedo era-me logo apontado. Se com isso aprendi a calar-me sobre a minha história, o pior foi que comecei a descambar. Revoltei-me contra o mundo e queria levar todos comigo na dor que tinha do porquê da diferença. Mas a minha família de acolhimento permaneceu firme e eu cresci.

Hoje conto quem sou. Lutemos todos pelo direito de crescer em família. Não ensinem a discriminar aqueles que passam por vivências diferentes, e não se inibam de convidar para vossa casa aquele miúdo “em instituição”. Nem sempre nascemos onde devemos permanecer. Normalizemos o acolhimento.

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