Cometer caridade na Educação
Compreendamos o seguinte: quando falamos de Educação Inclusiva, falamos de Educação. Ponto.
António Lobo Antunes escreveu uma crónica (“Os Pobrezinhos”) de que gosto particularmente, usando-a com frequência para expressar alguns atos. "Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida. Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria.”
Não gosto da palavra caridade. Gosto da palavra solidariedade mas, ainda assim, são bastas as vezes em que andam de mão dada, e numa espécie de osmose torna-se impercetível onde começa uma e acaba outra.
Nas escolas também há os pobres, de uma forma mais encapuçada. Não são descalços, nem rotos, alguns até são bem vestidos “e de boas famílias”, mas tiveram o azar, ou a sorte, de pertencer a uma alínea de um decreto e a partir daí abriu-se a caixa de Pandora. São “os outros”. São aqueles que são lembrados no Dia Internacional da Pessoa com Deficiência e que passam a fazer parte de um palco de uma espécie de “Got talent" onde as suas histórias de coragem e perseverança, apesar de terem uma deficiência (“os outros”), dão o mote a um altruísmo irresistível. Há um dia em que são lembrados que são pobres. Pobres de anonimato, pobres do “Nós”, pobres do grupo, pobres de espaço.
Em dias específicos colocam-se pequenos lembretes a dizer que “és diferente de mim, mas igual por dentro” e que “cada pessoa tem a sua maneira especial de ser bonita”, para lembrar ao pobre que faz parte de outro leque. Que tem um constante holofote sobre si, mais para salvar os outros do que a si próprio.
Normalmente, os dias específicos são no início do ano (basta recordar um texto que é muito comum ler nas redes sociais nos inícios do ano letivo, apelando a não nos esquecermos dos meninos diferentes) e no Dia Internacional das Pessoas com Deficiência.
São alunos acometidos de caridade e de solidariedade. Com trabalhos de voluntariado pontuais, com testes adaptados não à sua individualidade, mas àquilo de que padecem no conceito geral de cada um.
A minha grande questão e o meu problema com estas atitudes não se prendem apenas com aquilo a que por vezes me soa um pouco a displicente, mas com a perda de tempo em relação àquilo que é efetivamente importante: as limitações de liberdade no acesso ao emprego; no acesso à via pública; nas universidades; nos números de empregabilidade de muitos de nós. Sim, nós. Não os outros. Assumamos, de vez, a diversidade.
Os indicadores de direitos humanos de 2020, publicado pelo Observatório da Deficiência e Direitos Humanos, revelam uma percentagem que tem vindo a subir desde 2011. Com uma taxa de empregabilidade de 5% em 2011 para 13,5% em 2019. O sistema de quotas implementado desde 2001 e os projetos responsáveis de visibilidade deste problema têm permitido esta tendência crescente de empregabilidade. E é neste ponto que é necessário focar. Este crescimento não acontece, nem pode acontecer, quando exigimos menos daquilo que um aluno pode dar independentemente das suas limitações. Quando acomodados por uma expetativa toldada pelo preconceito, nivelamos por baixo oferecendo palavras e desenhos. Como diz Sandro Resende, responsável pelo projeto Manicómio, “são quatro anos de dignidade, não são quatro anos de folhas A4”. É que ainda há muitos alunos presos em folhas A4.
Compreendamos o seguinte: quando falamos de Educação Inclusiva, falamos de Educação. Ponto.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico