O perdão e o festim dos lobos
A “teologia” de reconciliação de João Lourenço, longe de convincente, não aquietou os ânimos e os clamores das vítimas de 1977, embora o regime angolano declare o contrário.
De novo viajo até às águas turbulentas do passado de Angola em 1977 no esforço de não deixar que os sulcos da história de então se apaguem e se esqueçam, destruídos pelo rolo compressor do regime do MPLA. Como lembra um escritor chileno, opositor da ditadura de Augusto Pinochet, o esforço de não olvidar é gigantesco e obriga a ter o dedo constantemente em cima da ferida aberta[1].
João Lourenço e o seu regime, em rigor, simbolizam a ideia do rolo compressor, de apagamento da história não-oficial e das suas memórias. O seu pedido de perdão proclamado como política de Estado na resolução dos conflitos internos não fez dele um político mais apreciado, de grandes méritos. Ele não agiu por nobreza e despojamento partidário, e tão-pouco como alguém sintonizado com os interesses maiores da sociedade. Agiu antes de forma calculista, amoral e capciosa ao sabor da sua bandeira faccionária. Faltou-lhe o gesto supremo, decisivo que faria dele realmente um gigante. Não foi capaz de romper interesses fossilizados de grupos, especialmente do bloco militar, e pôr a descoberto o rosto dos monstros responsáveis pelo banho de sangue no 27 de Maio. Faltou-lhe a grandeza de um Nestor Kirchner, ex-presidente da Argentina (2003-2007), que encarou de frente os militares em parada com os seus altos comandos e lhes disse, apontando o dedo: – “Não tenho medo de vocês. Os vossos crimes na ditadura irão ser julgados”. E foram, após reabertura dos processos anteriormente amnistiados pelo governo de direita de Carlos Menem. A isto, seguiu-se a ordem de os retratos dos ditadores da Junta Militar serem retirados da Casa Rosada, sede da Presidência da República em Buenos Aires.
Bem diferente de João Lourenço, que se escuda no artifício de um perdão que ele reparte com os demónios da perversidade da ditadura de Agostinho Neto. Fosse ele uma testa coroada e o diadema na cabeça cair-lhe-ia com frequência de tanto mentir. O general não consegue ser um catalisador de união do todo nacional e, muito menos, um agente corajoso de promoção da verdade, da justiça e reparação das atrocidades que o regime do MPLA consumou em quarenta e seis anos de governação, sobretudo a tragédia de 1977. A sua “teologia” de reconciliação, longe de convincente, não aquietou os ânimos e os clamores das vítimas, embora o regime declare o contrário. Elas não aceitam um perdão maculado de sangue, talhado a fogo e despido dos mais elementares princípios de justiça; um perdão partilhado com assassinos e que escandalosamente contrasta com o retrato do dia-a-dia nas cidades e vilarejos: os carniceiros de ontem passeando-se impunes na sua empáfia diante dos olhos do mundo, enquanto exibem a sua satisfação de estarem protegidos pelo MPLA que os homenageia publicamente numa atitude de frontal escárnio para com a memória das vítimas.
Pode ser que o general e os palacianos que o cercam tenham já cantado aleluias a si próprios por se considerarem os justos e generosos e os outros, os “maus”, sem direito a saber quem os matou. Sem direito à vida, esquecidos e sem cantos de louvor, já que o perdão do general (como se irá ver adiante) silenciou as vítimas e condenou-as ao fogo eterno e abafou os seus gritos de dor e de raiva na noite dos tempos.
Sem mais rodeios, adianto tratar-se de uma prática espúria, própria de governos tirânicos, traiçoeiros, preocupados tão-só em preservar os seus “enclaves autoritários permanentes”[2]. Nesta acepção, o perdão do general funciona exactamente como pilar de manutenção e domínio absoluto do regime sobre a sociedade angolana, convertida desde 1975 num enclave do Partido. Para o bom êxito desta empreitada de domínio, tornam-se cruciais as políticas de promoção da desmemória colectiva e do esquecimento enquanto armas estratégicas de acção. A chamada armadura legal com os seus jogos debaixo do pano completa este cenário de enganos em que o regime se revela tão hábil.
Como diria o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, as leis são como teias de aranha. Nas suas redes a macilenta elite política do MPLA enlaça a sociedade com os seus fios pegajosos e desarma os cidadãos na sua capacidade de reacção e protesto. É como um abismo devorador. Ao ouvir os canhonaços verbais do ministro da Justiça, Francisco Queiroz, colhe-se a impressão de que o Direito não passa de um aparato formal, inerte, sem atender aos fins superiores para que foi criado. As trapalhadas do Estado e os seus crimes não se investigam nem se julgam, disfarçam-se no fojo de retóricas falsas. Regra geral, usa-se o Direito como arma de vingança contra os desafectos políticos e contra os militantes caídos em desgraça aos olhos do Grande Chefe.
De todos os exemplares do regime, Queiroz é, sem dúvida, o protótipo do personagem que Bulhão Pato, escritor português do século XIX, crismaria de “meritíssimo servo da divina cúria”[3]. Não há outro cortesão que se lhe iguale em astúcia quando se trata de salmodiar as ladainhas dos seus patrões do Partido e do Estado. Apesar de reconhecer no apocalipse do 27 de Maio uma monstruosidade, ele desculpa os seus autores sob a estulta alegação de ter havido uma “tentativa de golpe armado” para depor Agostinho Neto.
O drama vivido até hoje pelas famílias de tantos homens, mulheres e adolescentes massacrados aos milhares pelo MPLA, é um facto que parece não abalar as muralhas de indiferença do ministro e dos seus pares. Da mesma forma que não o preocupa a funesta contabilidade de crianças crivadas de balas numa escola em Malanje e em diversos outros lugares. Ou as centenas de indivíduos, ainda imberbes, integrantes de companhias e brigadas militares igualmente passados pelas armas; ou a terrífica história do jovem soldado acabado de contrair matrimónio e que a Segurança de Estado prendeu praticamente à beira do altar à vista da esposa, familiares e amigos. Nunca mais as suas pegadas foram vistas no mapa dos vivos. A toda esta colecção de tormentos, Queiroz responde com platitudes e palavras de desvalorização da tragédia; e não menos com discursos salpicados por teorias da banalidade e por justificações caricatas sobre a inevitabilidade da furiosa repressão desencadeada pela ditadura de Neto.
Os mandarins do MPLA, na verdade, não se detêm nos seus destemperos de teatralidade política. Na qualidade de porta-voz do regime, Francisco Queiroz tem-se especializado em estratégias de desinformação. Reiteradamente declara ser mais importante que nunca, na hora presente, abraçar o perdão oferecido pelo general João Lourenço e esquecer tudo o que está para trás. Esquecer as crueldades e o terrorismo de Estado, que ele não menciona, e que abalaram a sociedade nos seus alicerces mentais e a deixaram embalsamada em estado anímico de medo até aos dias actuais.
Com esta e outras piruetas políticas o ministro desferiu um pontapé nas Convenções e Tratados Internacionais (de que Angola é signatária) e fixou um novo marco jurisprudencial. Proclamou estar aberta a porta de acesso a um mundo novo, anunciador de bons sinais, e que esta porta é a da reconciliação nacional auspiciada pelo pedido de perdão do general. Que se aproveite, portanto, esta excelente dádiva e esperança, enfatiza Queiroz, por meio da qual as vítimas e os algozes poderão dar-se as mãos em espírito confraternal e abraçarem-se entre si indulgentes, pondo de lado velhos ódios e revanchismos.
Tal é, pois, o paraíso prometido pelo poder coercitivo do regime do MPLA com as suas terminologias de re-significação da realidade. Uma mascarada abjecta com a qual se tenta enganar os parentes das vítimas desaparecidas e também os sobreviventes. E com a qual se tenta fazer obscurecer e esquecer a memória dolorida de quem foi humilhado em prisões e campos de concentração pelo pesado tacão de militares assassinos. Diante da dor imensa de filhos inconsoláveis que exigem por direito ser esclarecidos sobre a morte dos seus progenitores – muitos dos quais executados de forma selvagem –, os dinossauros do Partido e do governo respondem com altivez. Eles não estão preocupados com o que as pessoas pensam e os sofrimentos que provocaram. Não querem ouvir ninguém e não querem saber da multidão de inocentes sacrificados nas fogueiras de uma “revolução” conduzida por delinquentes políticos. Ao criarem uma ridícula Comissão de Reconciliação, impuseram ao país um jogo desigual de forças, à sombra do qual traçaram uma linha de demarcação e de orientação política gerida de cima para baixo com o propósito de beneficiar o regime e salvaguardar os símbolos e os segredos do MPLA e as suas ocultas maldades.
É evidente que os donos do poder, em nome de uma simulada cenografia de paz e reconciliação, querem fazer acreditar da necessidade de se sepultar a memória do 27 de Maio e os três anos devastadores que se lhe seguiram, de modo a poupar-se o país a mais traumas, conforme a ladainha desses funcionários do horror. É preciso ajudar o povo a esquecer as agitações subversivas de 1977, visto não serem parte referencial da história nacional, dizem eles. É meramente uma excrescência a ser apagada. Logo, não há lições a guardar de tal período, nem as gerações presentes e vindouras se têm de preocupar em lembrar ou estudar tais acontecimentos. É um passado inútil, para esquecer. Relevante mesmo é o futuro radioso que se desenha para Angola sob o leme seguro do MPLA. É para esse tempo além, livre de perigos internos, que as novas gerações devem olhar com orgulho. O oposto disto, buscar culpados no passado é, segundo a mesma propaganda do Partido, obra maligna da oposição.
Assim, recuperar os sulcos da história do 27 de Maio e valorizar a sua importância e o seu conhecimento não passa de uma obstinação dos mal-intencionados e sensacionalistas sempre apostados em assustar os incautos e arrastá-los nas águas sujas do descrédito, espalhando o vírus de que o país vive à mercê de déspotas e de chacinas. Ainda no juízo da burocracia do MPLA, o perdão invalida toda a histeria e mentiras dos inimigos da paz, uma vez que é graças ao perdão que a reconciliação nacional se tornou uma realidade. Sendo, portanto, o 27 de Maio e as polémicas criadas à sua volta um assunto encerrado.
Uma hipocrisia sem tamanho esta posição do MPLA com o seu falso paraíso à sombra do qual se confinam as vítimas numa espécie de exílio e as privam de voz e do direito a conhecer toda a verdade. Em suma, uma posição deplorável num partido que chefia o Executivo e não disfarça nunca a sua intenção de mutilar a história e exaltar os seus mitos e “heróis”; ao mesmo tempo que dá mostras de uma infinita desfaçatez ao não fazer caso da sensibilidade de milhares de cidadãos que perderam parentes fuzilados e se sentem indignados e traídos ante a mudez dos órgãos de justiça. Em todos estes anos o que se tem visto é um teatro de obscenidades e ameaças e o uso arbitrário das leis pelo poder absoluto. Um autêntico festim de lobos. O que seria da Alemanha, e até do mundo, se os seus dirigentes no pós-guerra tivessem enterrado os crimes do nazismo e os nomes dos seus responsáveis? Seria um duplo crime contra a humanidade. Pois, é este mesmo tipo de crime que o regime do MPLA pratica até ao limite da insolência na tentativa de salvar o rosto dos seus criminosos em detrimento das vítimas e do seu sofrimento.
É manifesto o desdém do regime pelos princípios de Nuremberga aprovados pela ONU em 1950 e que definem o que se entende por crimes contra a humanidade: prisão ou outras formas de privação da liberdade física, tortura e agressão (descritos no Estatuto de Roma como actos desumanos), assassinatos, extermínio e desaparecimento de pessoas no contexto de uma política de Estado. Queiroz já deixou selado o seu desprezo pelas normas do Direito Internacional numa entrevista dada a uma rádio francesa. Ele cumpre à risca o papel de “dobradiça” dos mecanismos tortuosos do poder. Não anda muito longe de ser a cópia de uma ridícula personagem chamada Antero de Abreu, antigo procurador-geral da República, que no consulado de Agostinho Neto covardemente se calou diante da catástrofe humana do 27 de Maio. Mesmo assim, depois de tão sórdida omissão, ainda se viu o mesmo procurador, despido de qualquer melindre moral e jurídico, a exaltar o Grande Ditador.
As palavras com que o general João Lourenço adorna o seu pedido de perdão não contêm a mínima substância de credibilidade moral e política, e muito menos de credibilidade jurídica, quando colocadas em presença do sangrento monumento de barbaridades da ditadura de Neto. Ao perdão não se adjudicou um propósito maior, realmente verdadeiro e justo. Sobre a direcção política do Estado e do seu governo recai o dever de identificar e processar a responsabilidade criminal dos indivíduos incursos em graves violações aos direitos humanos no 27 de Maio. E, consequentemente, o dever de os punir. Sobretudo militares e civis de alta hierarquia responsáveis por funções de comando. Deixá-los ocultos, como até agora, sob as pedras do anonimato, configura um crime gravíssimo só observável em regimes políticos canalhas; e significa, por outro lado, que a Justiça em Angola naufragou totalmente, traiu a sua própria essência, que é a de julgar, e alinhou em pactos de silêncio.
Poderá admitir-se, por razoável, que se se aplique aos criminosos uma sentença simbólica isenta de condenações judiciais, todavia os seus nomes têm de ser conhecidos e expostos na tela do escarmento das opiniões públicas do país e do mundo. Sem escapatória para quem quer que seja, mesmo para os que já receberam o beijo da morte.
Cabe, no entanto, perguntar: possuirão os homens actualmente em cena estatura suficiente para retrocederem na sua teia de manobras ardilosas e assumirem, finalmente, um gesto regenerador e de resgate da memória de milhares de mortos-vivos que reclamam por uma tumba e pelo reconhecimento das suas biografias? Tenho o espírito severamente enrugado pelo cepticismo para acreditar em tal possibilidade, as criaturas do regime já provaram o que são, especialmente o general. A pequenez desta geração de políticos é gritante. É uma geração tão perversa quanto a “geração tirânica” que a precedeu na infame ditadura de Neto. Aliás, não é difícil perceber nas decisões do palácio presidencial a sombra do antigo autocrata. O general sente-se feliz como o príncipe Próspero no conto de Edgar Allan Poe[4], não parece estar incomodado. Neto serve-lhe de inspiração na eleição dos seus disfarces.
Alguns desavisados e optimistas ainda persistem em crer no milagre de uma regeneração, iludidos com os cantos maviosos das sereias do regime. Ainda acham que o general é sincero. Das duas, uma: ou se protegem com uma boa couraça de prudência e imitam Ulisses, o grande herói das narrativas de Homero que se fez amarrar com a sua tripulação aos mastros dos navios para não caírem no turbilhão da tentação das sereias, ou então só lhes restará no futuro a negra e eterna desilusão da sua fraqueza e cumplicidade.
O MPLA faz lembrar o povoado fictício de Villefranche (algures na região da Provence), da série de televisão Labirinto Verde, em cuja floresta escura se escondiam cadáveres e tesouros e onde os crimes se repetiam incessantes. Ali nada era apurado, tudo permanecia na mesma, adiado, sem solução[5]. Igual ao que se passa no reino fantasmagórico do MPLA, onde o que parece ser não é, e sim um mundo de silhuetas e “fantasias delirantes”.
Lembro, a finalizar, as palavras visionárias do poeta André-Marie Chénier (1762-1794), figura proeminente da Revolução Francesa e um dos seus mais irreprensíveis cidadãos, no momento em que pisou o patíbulo condenado pelos seus companheiros robespierristas que o sacrificaram com os ferros da guilhotina. Ao bater com a cabeça no barrote da lâmina, ele balbuciou o seu último aviso ao povo: – “É pena! Aqui ainda havia alguma coisa”[6]. Digo o mesmo do MPLA e do seu regime. O pouco, o pouquíssimo que ainda havia de positivo, perdeu-se irremediavelmente como uma estrela em noite de tempestade. No seu lugar sobrevive um fóssil em lenta desintegração.
[1] Roberto Rivera Vicencio. “El Arte de no Olvidar o el Permanente Dedo en la Llaga”, Altre Modernitá, Università Degli Studi di Milano, n.º 11, Mayo 2014, p. 202.
[2] Expressão da cientista política brasileira Glenda Mezarobba, pioneira em estudos sobre a justiça de transição. Ver a sua reflexão “A Responsabilização Criminal de um Agente da Ditadura”, Poder 360 [jornal digital, Brasil], quinta-feira, 01 de Julho de 2021.
[3] Bulhão Pato. Sob os Ciprestes. Vida Íntima de Homens Illustres, Lisboa, Livraria Bertrand, Viuva Bertrand & C.ª, Sucessores Carvalho & C.ª, 1877, p. 98.
[4] Edgar Allan Poe. “La Máscara de la Muerte Roja”. In: Cuentos (traducción Julio Cortazar), Madrid, Alianza Editorial, pp. 89-90.
[5] Direcção artística e escrita de Mathieu Missoffe, série franco-belga, MMXVI.
[6] “André Chénier. Sa Vie et Ses Oeuvres”. In: Poésies de André Chénier Publiées Durant Sa Vie. Précédées D’Une Étude Sur le Poète Par M. Becq de Fouquière, Paris, Charpentier, Libraire-Éditeur, 1862, p. XLV.