As surpresas da eutanásia
Contra todas as expectativas a lei da morte a pedido caduca perante um Parlamento dissolvido em contexto de crise política, ficando a revisão da lei para uma avaliação na próxima legislatura. Os deputados tiveram tanta pressa em fazer passar a lei que acabaram por fazer uma nova versão mal acabada
Nestes últimos cinco anos assistimos às várias tentativas dos proponentes da legalização da eutanásia que foram tentando responder aos artigos considerados inconstitucionais, sendo reconhecido o esforço por delimitar uma lei cujos contornos exigem máximo rigor. O criticado veto presidencial identifica “perplexidades inesperadas” em relação à versão original.
Convenhamos que é diferente o conceito de “doença fatal”, doença “incurável”, ou apenas “grave”. Esta falha dos deputados foi atempadamente resolvida com o veto de Marcelo. Não esquecendo o parecer negativo de todos os relatórios de ética que foram pedidos para avaliar a lei de 2020 dos cinco projectos do PS, IL, BE, PAN e dos Verdes. Esta falha quanto às considerações éticas das comissões que têm autoridade para avaliar as leis de fim de vida poderá sair cara ao futuro desta lei.
A árdua tarefa de legalizar a morte e suicídio assistido fez-se perante o conhecimento da experiência de países como Holanda, Suíça, Bélgica, Canadá, Austrália, que desde a legalização apresentam aumentos anuais exponenciais de eutanásias. A desinformação sobre a realidade destes países nos meios de comunicação em geral é gritante, por cada notícia fatual do tema são publicadas duas pela legalização da eutanásia. Os media, talvez por falta de meios e de tempo, não têm aprofundado o tema das várias emendas que a lei tem sofrido desde o seu início na Holanda e na Bélgica, bem como as suas consequências na sociedade.
Há estudos publicados sobre o sofrimento dos médicos e enfermeiros nos problemas de consciência na aplicação da morte antecipada com eutanásia. Médicos treinados na prática de eutanásia e aconselhamento estão agora mais reticentes, particularmente no que diz respeito à eutanásia de pacientes psiquiátricos e à eutanásia realizada sem o consentimento da família. É o resultado de uma pesquisa com mais de 180 médicos que concluíram o treinamento LEIF (Levens Einde Informatie Forum), um curso para médicos que desejam treinar o fim da vida e a eutanásia.
O caso da eutanásia da jovem Tine Nys parece ter desempenhado um papel decisivo neste desenvolvimento. Este caso dizia respeito à eutanásia de uma jovem que sofria de depressão, cuja família apresentou uma queixa contra os três médicos envolvidos na eutanásia. Eles foram absolvidos durante o julgamento no início de 2020, mas o médico que havia realizado a eutanásia de Tine é atualmente objeto de um julgamento civil. A pesquisa mostra que um em cada cinco médicos do “LEIF” dizem ter mudado de posição sobre eutanásia durante este julgamento.
Será que choca o confronto com a realidade este abrir a porta de doentes em sofrimento para crianças, eutanásias involuntárias com casos no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos? Mas esta realidade não deve também ser abordada pelos media?
No caso Pretty versus Reino Unido (2001), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem esclareceu que o “direito à vida” garantido pelo artigo 2.º da Convenção não tinha um aspecto negativo, ou seja, não conferia o direito de morrer, “nem pode criar o direito à autodeterminação no sentido de que daria a cada indivíduo o direito de escolher a morte ao longo da vida”, noticiou o Institute European de Bioethique (07/9/2021). Neste caso o Tribunal destacou o fato de que não há obrigação positiva de um Estado se comprometer a não processar uma pessoa que ajuda outra pessoa a cometer suicídio ou a criar um marco legal para qualquer outra forma de suicídio assistido.
Nos media veículam-se casos dramáticos de doentes que pedem para morrer, gritos de desespero como demonstra o filme francês “Tout cést passé bien”, lançado este verão. Baseado no livro de 2013 de Emmanuèle Bernheim, conta a história de uma filha (Sophie Marceau) que, a pedido do pai, o ajuda a “acabar com isso”. A história relata como o seu pai, amado e odiado, consegue exercer a sua autoridade sobre os entes queridos. Como espectadores assistimos à violência deste pedido aos familiares que são obrigados a seguir as ordens de um homem com desejo de controlar tudo.
Não faltam filmes e livros para abordar a complexidade de direito à própria morte. Mas não resolvem esta questão de autonomia, porque esta escolha envolve sempre um outro que terá de dar a sentença de morte ao doente.
Quem não desespera perante a solidão e o sofrimento físico? Há dignidade em todas as situações até mesmo no pedido de morte, mas, se temos o direito a escolher, não temos o direito a que cuidem melhor de nós? Enquanto não se responder a melhores cuidados de saúde, se melhorar o Serviço Nacional de Saúde, se melhorar de forma eficaz a rede nacional de cuidados paliativos, como podemos dar o direito a morrer sem uma verdadeira escolha?
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico