Forças Armadas conjuntas, um salário mínimo europeu: em Maastricht discutiu-se a Europa que queremos
Uma integração mais rápida de migrantes e refugiados, com aulas de línguas. Um olhar sobre os migrantes económicos internos, com salários e horas de trabalho iguais em toda a UE. Forças Armadas sim, mas sem “acções militares agressivas”. Os cidadãos fizeram-se ouvir em Maastricht, Países Baixos, e isto é o que eles têm a dizer aos políticos europeus.
Uma força armada conjunta, a adopção de uma política de migração a nível europeu, porque “o problema relativo aos refugiados diz respeito a todos os países da União Europeia” com cursos de línguas para melhorar a integração, um salário mínimo europeu ou o fim da necessidade de voto por unanimidade para a tomada de decisões. Estas são algumas das sugestões que os cidadãos vão propor às instituições europeias e são o resultado de um fim-de-semana de trabalho intenso em Maastricht, Países Baixos, no âmbito do painel da Conferência sobre o Futuro da Europa que tem a seu cargo a as áreas da defesa, da política comercial, da ajuda humanitária, da política externa e dos alargamentos da União.
O fim-de-semana começou com mais de 150 recomendações em cima da mesa e terminou com apenas 40, aprovadas com pelo menos 70% dos votos dos mais de 160 europeus presentes em Maastricht e cerca de 40 que participaram remotamente por videochamada. O objectivo do encontro foi expresso desde a primeira hora pelos cidadãos presentes: conseguir aprovar uma lista curta de sugestões de forma a minimizar as hipóteses de acabarem numa gaveta. Agora, com 20 folhas de recomendações nas mãos, o próximo passo será apresentá-las aos responsáveis das instituições europeias, que poderão (ou não) dar-lhes vida.
Mas o que querem, afinal, os cidadãos? Querem diminuir a dependência face a países terceiros em áreas como a energia e restringir importações de países que permitam práticas laborais nefastas, como o trabalho infantil. Entre as propostas mais votadas conta-se ainda um salário mínimo e horas de trabalho iguais em toda a Europa, sinal de que a “migração económica interna” passaria a ser vista como “uma questão crítica”.
Votou-se ainda a favor da criação de uma Força Armada conjunta, com a participação de todos os países da União Europeia, embora sem a possibilidade de “de qualquer tipo de acção militar agressiva” – o objectivo seria que, por exemplo, prestasse apoio em tempos de crise como numa catástrofe natural. E o fim da necessidade de se chegar à unanimidade na tomada de decisões a nível europeu, substituída por uma maioria qualificada. As únicas excepções seriam a aprovação de novos Estados-membros e as alterações dos princípios fundamentais da União Europeia.
As migrações foram um dos temas quentes deste fim-de-semana. No final, os cidadãos escolheram apresentar propostas que garantissem melhores condições para quem chega. “Condições como os campos de refugiados de Moria têm de ser evitadas”, lê-se numa das recomendações. Os cursos de línguas para refugiados e requerentes de asilo e centros para menores não acompanhados que consigam suprir as suas necessidades “na primeira oportunidade”, olhando para estes jovens como “futuros cidadãos europeus”.
Mas a sugestão que granjeou uma das maiores taxas de aprovação entre os cidadãos sobre a migração foi a substituição do regulamento de Dublin, que determina qual é o país responsável pela análise dos pedidos de asilo e que consideram estar desajustado e desactualizado. O seu substituto terá de conseguir uma distribuição justa e proporcional dos requerentes de asilo, pois o sistema actual “coloca um pesado fardo sobre os países situados na fronteira da UE”. Pedem ainda o reforço da Agência Europeia de Asilo e um ritmo mais rápido de aprovação de pedidos. “Uma nova legislação específica permitirá um futuro melhor para todos os requerentes de asilo e conduziria a uma Europa mais unificada”, lê-se numa das justificações.
Abrir os olhos aos políticos
Os painéis sobre democracia, valores e direitos e alterações climáticas e saúde já fecharam os trabalhos e esta foi a terceira e última reunião entre os participantes do painel sobre o papel da União no mundo e migrações. Falta ainda conhecer as recomendações do painel sobre economia, educação e transformação digital que se reúne no fim deste mês em Dublin.
Para além pessoas presentes no painel de cidadãos, que deram as suas opiniões sobre os assuntos em discussão, chegaram mais de 29 mil contribuições e 9000 ideias dos quatro cantos da Europa através da plataforma online da conferência.
Todos os participantes foram escolhidos de forma aleatória, como nos explica Inês Pascoal da Silva, 24 anos, vinda de Sintra. A estudante de ortóptica e ciências da visão – que estaria melhor no painel sobre saúde, como confessou — recebeu uma chamada de um número desconhecido a convocá-la e, por sorte, atendeu. “Estavam a seleccionar as pessoas de forma aleatória. A rapariga que vinha na minha faixa etária desistiu, só recebi a chamada uma semana antes”, diz.
Lembra-se da confusão da primeira reunião, que aconteceu em Outubro do ano passado, e de ninguém saber muito bem ao que ia. Em Novembro, na segunda reunião, que aconteceu completamente à distância, já começaram com algo mais concreto: o que se pode fazer para resolver os problemas que existem?
Nessa altura, os participantes foram distribuídos em grupos mais pequenos de discussão e Inês Pascoal da Silva é a embaixadora do seu grupo. Ela é uma das 20 pessoas responsáveis por garantir que as opiniões expressas nesta conferência chegam aos governantes: “Os embaixadores tiveram três reuniões para além dos painéis. Vamos ter mais duas agora em Março. Temos de perceber as recomendações e orientações e passar aos políticos para ver o que eles acham. Há muitas coisas que queremos por em prática e que já existem, é uma questão de as operacionalizar”, explica.
Para esta reunião tinha apenas um desejo: “Acho que a coisa mais importante é mesmo não levarmos muitas recomendações, mas recomendações concretas. Em Janeiro, os embaixadores já tiveram a oportunidade de ver as recomendações do painel da saúde e democracia europeia. São muitas. Teve de se escolher sobre quais se iria falar por alto.”
E mesmo que tudo falhe, Inês acha que é positivo que se abram “os olhos aos políticos e dizer-lhes o que é que para nós está a faltar, o que para nós faz sentido acontecer.”
Da parte da Comissão Europeia, pelo menos, o compromisso de ouvir os cidadãos foi reforçado pela vice-presidente com a pasta da democracia e da demografia e membro da comissão partilhada que lidera este processo, a croata Dubravka Šuica, que falou aos jornalistas no primeiro dia da conferência: “Estamos ansiosos pelas recomendações, que vão ser incluídas nas conclusões finais e ser entregues aos três presidentes da União Europeia: Ursula Von der Leyen, da Comissão Europeia; Roberta Metsola, do Parlamento Europeu; e Emmanuel Macron, presidente do Conselho da União Europeia. Eles terão de implementar estas conclusões em políticas concretas – claro que dentro das suas competências —, mas este processo começou com a assinatura de uma declaração no ano passado”, a 10 de Março de 2021.
Uma torre de Babel
É numa cidade vestida de propósito para receber os conferencistas – com mupis nas paragens de autocarro com perguntas como “Vês um expatriado ou um migrante?” – que arrancam os trabalhos. Da lista inicial, é preciso escolher as prioridades. Um voto em várias fases decide quais das 150 recomendações iniciais têm força para serem apresentadas aos governantes.
As que passam o crivo dos participantes são depois refinadas por grupos mais pequenos de pessoas. O objectivo é que, com a ajuda de um mediador, cheguem à formulação de uma medida concreta e de uma justificação que a acompanha.
Numa sala, checos, alemães, italianos e gregos, cada um na sua língua, discutem a importância de um “eco-score”, impresso nas embalagens dos produtos comprados na União Europeia e determinado com base nas emissões da sua produção e transporte. Noutra, portugueses, italianos, croatas e polacos discutem o tratamento de menores desacompanhados que chegam à Europa.
Noutra ainda, fala-se se a definição de quem chega sem papéis deve ser “ilegal” ou “irregular” – o PÚBLICO não assistiu ao fim desta discussão, mas a avaliar pelas recomendações, ganhou a formulação “migrantes em situação irregular”. Uma rápida “gestão do primeiro acolhimento, que conduza a uma possível integração ou repatriamento de migrantes em situação irregular” conseguiu quase 86% dos votos da totalidade do painel e saiu da cabeça de um grupo de dez pessoas, entre italianos, espanhóis e alemães. Uma torre de Babel tornada produtiva com a ajuda de um serviço de tradução expedito – caso contrário, indecifrável para qualquer pessoa que tentasse seguir a discussão.
Jesse, 24 anos, veio de Roterdão, Países Baixos. Está num dos grupos que discute fronteiras e migrações. Diz que se sente como um peixe fora de água, visto que a sua área de estudo é a agricultura sustentável, mas acredita que “se calhar ainda é melhor que não nos especializemos nas áreas que estamos a debater”.
Descreve o ambiente no interior das salas como uma “discussão para a frente e para trás, com algumas opiniões diferentes”. “No fim, acho que fizemos uma coisa com a qual todos concordamos. Não há extremos nas nossas opiniões, todos temos mais ou menos a mesma opinião, só com pequenas diferenças” baseadas nas experiências vindas diferentes países, descreve. Presencialmente, as opiniões parecem uniformes, mas o estudante salienta que muitas das opiniões dissidentes se expressam no fórum online, através de comentários de cidadãos que não foram convocados a participar nesta reunião.
Recomendações não são o fim da história
Será que há um viés entre os participantes? Apenas aqueles que acreditam no projecto europeu foram convocados? A distinção entre europeísta e eurocéptico pode estar mais esbatida do que se pensa, considera o eurodeputado belga Guy Verhofstadt, um dos membros da comissão partilhada que lidera este processo. “Isso não existe nos cidadãos. Eles são maioritariamente positivos acerca da Europa, mas muito críticos da União Europeia”, diagnostica.
Essa é uma das virtudes apontadas a esta conferência: a de trazer os cidadãos para o centro da tomada de decisões ao mais alto nível na Europa. E são eles a garantia de que as recomendações não caem em saco roto na última fase deste processo, no último pilar: o plenário, a assembleia mista de cidadãos, governantes e representantes dos Estados-membros. “Os cidadãos vão estar presentes [em Estrasburgo, na última fase] e vão criar pressão sobre os stakeholders da UE. A Comissão, o Conselho e o Parlamento não podem ignorá-los. É impossível que os políticos profissionais o ignorem”, sublinha. “Estas recomendações não são o fim da história, são a base de uma proposta de reforma.”
E ainda há muito por fazer nas áreas sobre as quais este painel se debruça, porque “sejamos honestos: não temos uma política de migração a nível europeu”. O ex-primeiro-ministro belga lembra o primeiro Conselho Europeu em que participou, em 1999: “O que me lembro, além da comida, é que decidimos que a migração devia ter uma política europeia. Vinte e três anos depois, ainda não existe. A crise migratória de hoje é consequência disso: cada país dos 27 faz o que quer”.
Neste momento, “o que está claro é que a Europa está numa encruzilhada” e terá de se reformar sob pena de soçobrar perante a competição. “Não se pode governar um continente tão grande quanto este com a competição da China, EUA, Rússia, da forma que estamos a fazer.”
O último dia de conferência, domingo, ficou reservado para as votações finais e últimas palavras. “Não sei se alguma vez trabalhei de forma tão árdua”, confessa Veronica, da Polónia. O painel, com um dos temas tidos como mais complicados pelos participantes por “apelar a muitas emoções”, como resume a belga Liezl, chega assim ao fim.
John, francês, aproveita as últimas palavras, para afirmar que “a Europa deverá tentar ser uma luz no meio de águas turvas para ilustrar as vantagens de uma democracia participativa”. Mas será que estes eventos vieram para ficar?
Jesse, o estudante holandês com quem o PÚBLICO falou, defende que devem continuar, desde que dêem frutos. Acredita também que, a repetir a experiência, ele já não deve fazer parte: “Eu já fui ouvido, sinto que me escutaram”.
Guy Verhofstadt é da mesma opinião. “Estou a favor de um exercício como este se tornar permanente. Apenas ao fim de cinco anos é que as pessoas podem dizer o que pensam, nas eleições, mas actualmente isso é uma eternidade. Um exercício como este nos intervalos entre as eleições é interessante e necessário para avaliar o que foi feito e dar direcção.”
Agora, com os trabalhos deste painel quase encerrados, já pouco resta a fazer. Só em Abril, data do último plenário com cidadãos, participantes dos membros do conselho e outros parceiros, é que se vão saber que medidas avançam ou não. Mas a experiência já serviu para fortalecer os laços de alguns: “Viva a Europa!”, termina John.
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Este artigo faz parte do projecto A Europa que Queremos, apoiado pela União Europeia.
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