A lua está morta, morta; mas ressuscita na primavera*

As nossas crianças de 10 anos do interior estão a pensar em desemprego, e nas contas de futuras casas que talvez não possam pagar. No fim da água potável. E nesta guerra que ainda agora começou.

Fui à Rússia várias vezes, filmei lá em 2005. Trabalhei com russos e ucranianos, amigos irmãos. A tentação de falar da guerra é muito grande, mas venho falar da paz.

Tinha um texto escrito a propósito de coisas que aprendi sobre as nossas crianças, e o meu primeiro impulso, assim que começou a guerra, foi achar que o texto não era oportuno. Mas pensei melhor, e ainda que me custe escrever sobre alguma coisa que não seja a guerra, o texto é oportuno, sim. Talvez até mais do que há uns dias atrás.

Vou filmar no interior de Portugal e preciso de uma rapariga de 10, 11 anos, para entrar no meu filme. Decidi procurá-la só no interior do país. O papel é muito difícil, por isso na minha selecção fiquei só com as que falam bem, lêem bem e que intuo sejam inteligentes e sensíveis. Terei visto perto de quinhentas, e a cerca de duzentas pedi um vídeo com três coisas: que lessem um excerto de um livro à sua escolha, e que respondessem a duas perguntas: o que é que as fazia mais felizes e o que é que as preocupava mais no futuro.

Foto
Fábio Augusto

O livro mais escolhido foi A Fada Oriana. E de um modo geral à primeira pergunta responderam que o que as fazia mais felizes era a sua família.

Acontece muitas vezes na vida que as crianças percam avós, mas os avós antes da pandemia só morriam uma vez. As crianças de agora foram obrigadas a pensar muitas vezes na morte. E talvez no escuro dos seus quartos, na imaginação, os avós tenham morrido muitas vezes. E aqui e ali, ainda a medo, responderam-me que o que mais as preocupava era que os avós morressem de covid.

Falaram também bastante do ambiente, de poder acabar a água potável ou de que, por causa da poluição, possam surgir mais doenças sem cura, por exemplo.

Mas o que mais me espantou foi a pandemia não ter sido, nem de perto nem de longe, o assunto mais referido.

A esmagadora maioria das respostas tinha que ver com o medo de um futuro desemprego. E medo de não terem dinheiro para ter uma casa, medo de não conseguirem vir a ter um trabalho de que gostassem, e até medo de ficarem a viver na rua sozinhas por não poderem pagar as contas. Lembro: 10,11 anos. Nos vídeos consigo ver uma nesga das casas, casas que me pareceram confortáveis. Uma nesga dos quartos que me pareceram acolhedores.

Em plena pandemia, este trabalho foi feito nos últimos quatro meses, as crianças de 10 anos, do interior, estão angustiadas com a possibilidade de virem a ser desempregadas. Talvez as das grandes cidades também, não perguntei.

Estas crianças, a uma semana da celebração do abandono das máscaras nas escolas, à beira do fim de todas as medidas restritivas causadas pela pandemia, acordam para ouvir que desde a Segunda Guerra Mundial que não se vivia um momento tão perigoso na Europa. Estive com elas agora, já depois de a guerra ter começado. Todas me disseram que a guerra era pior do que a pandemia. Uma disse-me que a pandemia não devia ter acabado, e quando eu lhe perguntei porquê, ela disse que se ainda houvesse pandemia, havia o confinamento e por isso não podia haver a guerra.

Ouviram falar de armas nucleares, ouviram talvez até falar de Terceira Guerra Mundial. Viram já imagens da guerra na televisão, vão ver mais. Talvez tenham até perguntado aos pais o que é um ditador, como há dois anos perguntaram o que era um vírus.

Algumas têm colegas ucranianas na escola.

Não sei sequer se vão acreditar que a guerra não vem para aqui.

Quando eu era criança, o que entrava pelas casas a dentro era a liberdade e o fim da guerra colonial.

Temos que saber aproveitar o privilégio da paz no nosso território, o tempo que se tem em paz, para não desvalorizarmos os sentimentos das nossas crianças e para as ouvirmos.

Temos que as deixar falar do que as preocupa. Não me parece que seja facultativo, nem me parece que seja uma coisa que possa esperar. Não lhes podemos atribuir angústias e preocupações que elas talvez nem tenham, têm de ser elas a dizer-nos o que as preocupa.

Temos o dever cívico de fazer alguma coisa urgente, e em larga escala, pelas crianças do nosso país. Sem estudos infinitos nem burocracias, só urgência, para devolver a alegria e a confiança às nossas crianças.

Uma parte do dinheiro do PRR para a educação, ou de onde for, tem que servir para isto.

Uma forma importante de dar voz é deixar criar.

Por exemplo, entreguem câmaras de vídeo nas escolas, deixem as crianças fazer os seus próprios filmes, contar as suas próprias histórias, falar do que as preocupa. Contratem gente do cinema para dar uma ajuda. Que as crianças possam fazer teatro em todas as escolas. Contratem actores e encenadores. Deixem as crianças aprender a tocar um instrumento, a aprender a tocar em grupo. Contratem músicos para darem aulas em todas as escolas. Dêem mais atenção ao desporto, aos desportos em grupo. Deixem as crianças escrever textos livres, falar sobre o que escreveram. Se for necessário, por uma questão de horário escolar, não tenham problemas em deixar cair disciplinas curriculares que podem esperar. Tempos excepcionais exigem medidas excepcionais.

Defender a ideia de que vamos devolver a alegria e a confiança às nossas crianças com um psicólogo em cada escola é deitar a toalha ao chão antes sequer de se ter tentado alguma coisa. O psicólogo pode lá estar, e estará muito bem, mas como um complemento de todas as outras coisas.

Sem burocracias, e com vontade, é um plano que se organiza num instante.

Crianças que cresçam assim ainda vão a tempo de poder ser adultos mais confiantes, mais afirmativos e felizes. E mais felizes serão mais produtivos e menos doentes.

Mais empáticos e solidários.

E seriamos um país melhor.

As nossas crianças precisam da nossa ajuda. As nossas crianças de 10 anos do interior estão a pensar em desemprego, e nas contas de futuras casas que talvez não possam pagar. No fim da água potável. E nesta guerra que ainda agora começou.

Não sei a quem pedir, mas peço que alguma asa mágica proteja as crianças ucranianas de todas as bombas, e as crianças vítimas de todas as guerras e as que morrem de fome e de doença em todo o mundo todos os dias.

E em antecipação, peço também proteção para as crianças russas, porque, quando crescerem os movimentos pela paz nas ruas e praças da Rússia, Vladimir Putin não terá nenhum problema em mandar atirar sobre o seu povo.

Temos mesmo que saber dar valor à paz em que vivemos, e usá-la em favor de tudo o que pudermos.

* de um poema de García Lorca

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