A desigualdade intra-género
Ser mulher é, infelizmente, ainda muito pouco dignificante nalguns países e, nalguns casos, até, um fardo a que é impossível escapar.
No Dia Internacional da Mulher talvez seja altura de refletir sobre o que representa esta comemoração à entrada dos anos 20 desta década, em diferentes pontos do globo. Desde a esfera pessoal à profissional, ser-se mulher em 2022 tem abrangências profundamente díspares. Ser mulher é, infelizmente, ainda muito pouco dignificante nalguns países e, nalguns casos, até, um fardo a que é impossível escapar.
Há pouco mais de seis meses aceitei o desafio de tentar ajudar um ex-aluno da Católica Porto Business School, afegão, a trazer mãe e irmã de Cabul. Foi o início de uma epopeia de contactos. Após uma primeira tentativa das autoridades portuguesas para retirarem as duas mulheres de Cabul, em agosto, pensamos que nada mais havia a fazer. Mas, dois meses depois estávamos juntas, para celebrar a nova etapa na vida destas mulheres. Recebi ajuda de pessoas que mal conhecia e de outras que não conhecia de todo. E, numa pequena mostra do que vemos hoje acontecer, em Portugal, junto da população ucraniana, foi possível testemunhar a união a fazer a força, na reunificação desta família.
A ameaça era bem real: em Cabul, sem um homem na família que delas se encarregasse (o único filho/irmão estava em Portugal como refugiado político, depois de se ter recusado a sabotar o sistema de telecomunicações da empresa onde trabalhava), poucas esperanças tinham sobre os seus destinos. A mais jovem, com formação em gestão, e com lastro de ativista pelos direitos das mulheres afegãs, estava já numa lista de mulheres não gratas ao regime taliban; a mais velha, limitada na sua locomoção, não teria certamente como não depender da ajuda e caridade alheia, apesar de ter a sua própria casa e o seu próprio rendimento.
Desde a chegada dos taliban a Cabul que não podiam sair à rua, fazer as suas compras básicas, ir ao médico… Não podiam sequer abrir a janela, ligar a rádio ou a TV. Layla (nome fictício) lutou durante anos pelo acesso à possibilidade de as mulheres poderem sair à rua desacompanhadas, trabalhar fora de casa, exercer funções públicas, expressar-se pela arte, conversar com um homem que não marido ou filhos. Dedicou a sua vida a sensibilizar para a necessidade de respeito da mulher no seio do casamento, de consciencializar para a recusa da violência doméstica, opondo-se aos casamentos juvenis. Procurou educar para o respeito e para a proteção do corpo. Enfrentou crenças e tradições. E enfrentou o preconceito, apenas por desejar contribuir para a mudança de mentalidade. E foi julgada de arauto da desgraça, apenas por desejar ajudar as mulheres, agora amordaçadas em Cabul. A clausura a que ficaram expostas deriva da sua condição: ser mulher. A ameaça que ser mulher constitui num país às mãos deste e de outros regimes, é de tal forma intimidatória, que a sua condição desce ao nível de propriedade: uma desumanidade, em pleno século XXI, largos anos depois da emancipação feminina.
Portugal apresentou-se como um porto seguro para esta família, como se apresenta agora para as famílias ucranianas que o país acolhe. Portugal não é o El Dorado e muito há ainda a fazer em termos de igualdade de género. Mas afigurou-se como um porto seguro! O país encontra-se na 29.ª posição a nível mundial no indicador de segurança para mulheres, tendo inclusivamente perdido cinco posições de 2020 para 2021. Mas, volvidas as nossas próprias lutas e vencidas algumas agruras da desigualdade, parece inevitável caminharmos para a equalização do tratamento. Tem sido um caminho longo, com muitos obstáculos, de onde se destaca a dificuldade inerente à mudança de mentalidades. A conquista pelo respeito e pelo acesso a idênticas oportunidades tem sido, muitas vezes, encabeçada pelos próprios homens. É urgente que o caminho continue a fazer-se: cá e, sobretudo, lá.
O respeito pelas idiossincrasias, mas a igualdade de tratamento, devem fazer parte da educação e estar assegurados em todas as vertentes da vida, desde o ensino à carreira, em qualquer área de conhecimento, em qualquer área da vida: em privado e em sociedade. É isso que faz agora a diferença na vida de Layla e Jalila (nomes fictícios); e é por isso que o 29.º país na escala da segurança para as mulheres deve continuar a trabalhar. No Dia Internacional da Mulher e nos demais 364 dias do ano.