Vivemos um tempo de transição que é estratégico para a cultura, as artes e a criatividade em Portugal. É um tempo de ruptura evolutiva com o passado menos recente, um tempo em que se têm operado várias revisões e mudanças estruturais que se afiguram profundamente desafiantes e exigentes para o Estado e a sociedade civil, para as instituições e os cidadãos, para os criativos e os públicos.
Face ao cepticismo/pessimismo, insatisfação acumulada e lógica de “copo meio vazio” que, com maior ou menor justificação e legitimidade, pairaram amiúde sobre o universo cultural e artístico nas últimas décadas, há uma crescente luz de presença que se tem vindo a impor e que é vital preservar, consolidar e energizar para construir novos amanhãs neste cada vez mais vibrante e plural sector.
A potência dessa “pequenina luz bruxuleante” será maior ou menor em função da nossa – em sentido necessariamente alargado – mobilização e alinhamento colectivos, da nossa capacidade de tomar decisões assertivas e consistentes, da nossa visão estratégica a médio-longo prazo, da nossa proactividade para o risco, da nossa percepção holística e simultaneamente segmentada de um ecossistema que é complexo e multifacetado, do nosso real conhecimento e grau de actualização sobre as matérias em causa, da nossa disponibilidade para o elogio do “não sei” e para a autocrítica – em suma, de uma efectiva abertura para a transformação, para chegar a um lugar outro.
Lançando uma antevisão para uma conjuntura pós-pandémica e para o próximo futuro da cultura e das artes, existem claramente dez questões estratégicas a ter em conta na transição deste sector para um novo patamar de evolução e crescimento, a qual já está em curso e é irrealista negar.
Duas dessas prioridades, que se reportam às vertentes da criação e programação culturais, consistem na consolidação das redes culturais (teatros, museus, centros de arte contemporânea, bibliotecas e arquivos, artes e ofícios tradicionais) numa perspectiva integrada e transversal – em que o Plano de Recuperação e Resiliência desempenha um papel muito relevante –, bem como no aumento e diversificação do apoio estatal à actividade artística independente através quer de um maior investimento financeiro, quer de outras estratégias e mecanismos de incentivo e suporte à criação e, assim, aos processos de pesquisa/investigação, experimentação e inventividade. Por outro lado, e visto que a circulação de projectos artísticos constitui uma área em que será preciso investir ainda maior esforço, um funcionamento harmonioso e eficaz dos ecossistemas culturais em rede permitirá também que os criadores e outros profissionais associados (intérpretes, técnicos, produtores, agentes) tenham condições para desenvolver um trabalho de maior fôlego, alcance e solidez.
Uma terceira questão essencial, intimamente ligada às anteriormente aludidas, tem a ver com a apologia e aplicação, nos modos de produção e fruição culturais, dos princípios da sustentabilidade ambiental, da transição digital, da inclusão/representatividade social e da acessibilidade física, social e intelectual. Estas quatro temáticas constituem âncoras incontornáveis enquanto objectivos de interesse público cultural, questionando práticas instaladas, suscitando renovados debates e propondo caminhos alternativos para as políticas públicas. Trata-se de uma quadratura que deve (continuar a) embasar todo o ecossistema cultural.
A componente laboral e regulatória é outra dimensão nuclear, nomeadamente através da concretização, com a máxima disseminação junto dos vários estratos e segmentos do sector, das disposições do estatuto dos profissionais da área da cultura aprovado em 2021 e que entrou em vigor este ano, o qual instaura um novo paradigma de relação com o trabalho na área cultural e artística, valorizando as relações laborais estáveis e garantindo a existência de um regime de protecção social.
A prossecução da estratégia de sensibilização e informação públicas dos benefícios desta inédita medida estrutural, de modo a haver uma assimilação efectiva dos seus pressupostos e uma adesão crescente e generalizada dos seus destinatários, bem como uma adequada e contínua monitorização do seu processo de implementação (inclusive no sentido de se introduzirem eventuais afinações), são igualmente preocupações a ter em conta pelo Estado, mas também pelos diversos agentes do sector. A isso acresce a continuação de uma vital aposta no incremento da literacia laboral e fiscal destes profissionais.
Outra prioridade estratégica prende-se com a potenciação e densificação das múltiplas dinâmicas territoriais associadas ao processo da Capital Europeia da Cultura 2027, as quais vêm afirmar novas ou renovadas centralidades culturais e terão um papel fundamental na gradual correcção de assimetrias e outras desigualdades em Portugal. “Não obstante” a short list já conhecida (Aveiro, Braga, Évora e Ponta Delgada), estão a ser implementados por todo o país e regiões autónomas promissores processos colaborativos e estratégias intermunicipais em rede, cujo potencial transformador dos territórios e paisagens culturais, através da concretização de projectos estruturantes com escala e escopo regionais/supra-regionais, deve ser estimulado e apoiado pelas entidades governamentais e outras, privilegiando-se também lógicas de discriminação positiva.
Um sexto vector traduz-se no prosseguimento da aposta na internacionalização e promoção externa da cultura e artes nacionais, vertente que tem vindo a ser reforçada e que permitirá aos criativos portugueses ganhar mais mundo, alargar os seus circuitos e difundir a sua produção artística de um modo mais ambicioso e consistente, propiciando assim um acrescido reconhecimento do seu labor e qualidade estéticos junto da crítica e dos públicos.
O aprofundamento de práticas colaborativas entre a cultura e outras áreas de política sectorial, nomeadamente com o turismo, a economia, a solidariedade social e a educação, explorando interfaces e transversalidades com interesse estratégico, constitui uma sétima prioridade. Com projectos culturais importantes já em curso, sobretudo nos planos escolar e social, quer por iniciativa estatal quer através de instituições e agentes independentes – os quais têm mostrado vitalidade e impacto crescentes e reconhecidos –, afigura-se essencial uma concertação mais contínua e ambiciosa entre, mormente, os universos da cultura e do turismo, atendendo a que o turismo cultural e seus respectivos desdobramentos temáticos têm vindo a afirmar-se como activos diferenciadores e qualificadores em termos de potenciação e valorização internos e externos do país. Esta afinação interministerial, assente em projectos pluridisciplinares, é fulcral para incrementar e fortalecer a coesão territorial.
Essa articulação ganha ainda especial relevância no que se refere à questão da formação e das profissões da cultura, e ao actual mercado de trabalho nesta área. O desenvolvimento de novas redes culturais e a decorrente valorização estatal dos recursos humanos alocados aos equipamentos em termos de qualificação e adequação às suas funções vêm colocar em cima da mesa novos desafios para as instituições, sendo essencial que o universo de entidades formativas públicas e privadas (universidades, politécnicos, centros de formação e outras) possa estar atento a esta plural realidade e consiga dar resposta a velhas e novas necessidades do sector ao nível de cursos, conteúdos curriculares, corpos docentes e estratégias de integração na vida profissional.
O Acordo de Parceria – Portugal 2030 é outro eixo de inegável importância, o qual fixa os grandes objectivos estratégicos para aplicação, até 2027, dos fundos comunitários através dos diferentes programas definidos, sendo que o sector cultural e artístico pode vislumbrar aqui diversos cenários e possibilidades de financiamento plurianual de projectos, nomeadamente (mas não apenas) no âmbito do OP4 Portugal mais Social e Inclusivo, que visa a valorização do papel da cultura e do turismo sustentável no desenvolvimento económico, inclusão social e inovação social.
Neste particular, é essencial que as entidades culturais públicas e as estruturas independentes possam captar apoio de maior monta tanto para projectos nas áreas da criação, programação, circulação, produção e edição, como inclusive para tipologias de intervenção que por norma não estão previstas ou não se enquadram nos programas regulares de apoio às artes suportados pelo orçamento do Estado (como realização de obras de requalificação, aquisição de material técnico, entre outras), complementando e diversificando assim as suas modalidades de financiamento. É cada vez mais premente que os agentes culturais de várias áreas possam tirar partido destas verbas comunitárias e ser também eles a executar directamente esse apoio financeiro, assumindo-se como promotores, o que lhes incutirá maior responsabilização, capacitação e autonomização, reconhecendo-se, também por esta via, a identidade e especificidades do ecossistema cultural, artístico e criativo.
Uma nona prioridade – muito pouco abordada, talvez por levantar sempre muita discussão e falta de consenso, e por estar repleta de preconceitos, receios e visões pouco flexíveis atendendo à realidade actual – diz respeito a uma componente de sustentabilidade financeira de estruturas e projectos culturais e a uma correlata reflexão sobre enquadramentos e formatos legais e fiscais para modelos de negócio associados a organizações sem fins lucrativos. Este tema continua a ser, não poucas vezes, um elefante no meio da sala.
Se constitui um princípio fundamental do sistema democrático o papel central do Estado em relação à valorização, disponibilização, difusão e financiamento da cultura, e se, por outro lado, está já enraizada uma íntima correspondência funcional e simbólica – que é legítima e essencial – entre o chamado “serviço público cultural” e uma dimensão não lucrativa, o desenvolvimento de iniciativas de mercado ou de negócios de impacto social e cultural por ou integrando/abrangendo também entidades privadas que prossigam actividades de natureza não comercial (muitas delas financiadas estatalmente) é ainda um tema que gera muita controvérsia. Assim como, do outro lado, o facto de existirem empresas e outras entidades com fins lucrativos que, pontualmente ou de modo mais assíduo, exercem também, por motivos diversos, actividades/projectos de inequívoco interesse público cultural, os quais devem ser devidamente enquadrados a nível de eventuais apoios governamentais.
O aumento exponencial de agentes culturais nos últimos anos, fruto de uma vitalidade e diversidade cada vez mais notórias deste sector em Portugal (que são claramente de enaltecer), o consequente aumento da competitividade entre as estruturas e projectos artísticos, e as previsíveis limitações orçamentais no que toca aos apoios estatais atribuídos por via concursal devem conduzir a uma reflexão urgente e (des)construtiva em torno da sustentabilidade financeira da cultura e das artes, bem como das múltiplas relações entre a vertente do negócio/mercado e o sector cultural e criativo.
Neste âmbito, há quem advogue que a intenção, no seio do ecossistema cultural, de inovar a nível de modelos de obtenção de receitas não deve ser incentivado porque nem todas as causas encontrarão uma fórmula negocial que as torne financeiramente sustentáveis. Outros receiam que o florescimento de uma iniciativa de mercado possa deturpar ou desviar a missão primacial da organização. E há ainda vozes que confundem a criação de um modelo de negócio – que pode ser uma iniciativa, um segmento ou um conjunto de actividades dentro de uma dada organização e não a globalidade da sua intervenção – com uma obrigatória alteração do seu estatuto jurídico, a qual nem sempre é necessária ou até recomendável. Não descurando a maior ou menor pertinência e adequação destes argumentos, é fundamental que entidades públicas e privadas, instituições e profissionais desta área, promovam um debate comprometido, abrangente e não formatado sobre esta temática mais “silenciosa”. E que se tirem conclusões e estas se traduzam depois, do ponto de vista legislativo e regulamentar, em medidas úteis, realistas e exequíveis para o sector da cultura.
Por último: os tempos actuais e o consequente desfilar de novas e diferentes problemáticas na esfera pública, várias delas fortemente mediatizadas e politizadas (como as posições identitárias – questões de género, representatividade étnico-racial – e outras de cariz social), exigem uma revisão crítica sobre algumas linguagens e terminologias empregues nos discursos e práticas culturais. Até mesmo conceitos e termos mais recorrentes como, por exemplo, “periferia”, “interioridade/interior” ou “discriminação positiva” levantam cada vez mais questões às quais é preciso dar respostas consistentes. Os nomes que atribuímos às coisas também traduzem a importância, a consciência e o domínio que temos dos processos e dinâmicas que lhes estão inerentes. Como diria o poeta Nuno Júdice, é importante que as palavras acertem no centro das coisas. E para isso é preciso produzir pensamento: questionar e fazer as perguntas certas. Para depois chegarmos a respostas cada vez mais satisfatórias.
Apesar das habituais narrativas cépticas e críticas que continuam a encarar a cultura como o elo mais fraco, é realista constatar que o sector cultural e artístico vive uma fase, que é decisiva, de transição para um plano de maior centralidade e valorização na sociedade portuguesa e junto da esfera política. Com a convicção geral de que há degraus que não se quer voltar a pisar, linhas vermelhas que não devem ser transpostas, recuos que não podem repetir-se e faróis que não convém perder de vista.
Sabemos bem que é necessário tempo (esse grande escultor, em contracorrente com a velocidade e ansiedade que dominam os dias) e coerência e perseverança humanas para que cultura rime com mudança. Agora é fundamental não recuar, consolidar, afinar e seguir em frente, com a convicção de que o longe pode, de facto, ser aqui. É preciso pôr sementes a crescer, como diz certa canção de Sérgio Godinho, pois o futuro mora já ali.