O que mais precisamos para reflectir seriamente sobre o que se passa no ensino superior?
Portugal, o país de brandos costumes, ainda se basta excessivamente com o falso conforto da omissão ou com a paralisação perante o pressentimento da sombra do poder e das suas possíveis formas de opressão.
As últimas semanas colocaram em cima da mesa preocupantes situações de assédio sexual, moral, racismo, sexismo e homofobia dentro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), relativas a docentes desta instituição. A cada actualização de notícia, questiono-me acerca do espanto que estas transmitem.
Sou e fui estudante do ensino superior, sou docente e sou investigadora. Movimento-me num meio onde muitas pessoas, frequentemente em situações precárias de trabalho, dão tudo de si para fazer a ciência avançar e para que o ensino superior se constitua um espaço de liberdade e de construção partilhada de conhecimento. Por tudo isto, será simples compreender que me encontro num lugar (que poderá considerar-se, até, perversamente) privilegiado de observação, que integra diferentes prismas e sob o qual, talvez por todas as amarras silenciadoras que ainda experimentamos na nossa sociedade, não devesse ousar tecer considerações. Portugal, o país de brandos costumes, ainda se basta excessivamente com o falso conforto da omissão ou com a paralisação perante o pressentimento da sombra do poder e das suas possíveis formas de opressão.
Escrevo hoje esta crónica, não para falar especificamente das denúncias da FDUL, mas para convidar todos/as a fazer uma reflexão honesta sobre a sua vida académica, as suas experiências, o que ouviu e viu dentro e fora das aulas, ou mesmo entre as redes decorrentes dos espaços de ensino superior em que se inseria.
Feito este exercício estamos, pois, em condições de seguir para o passo seguinte, o de nos questionarmos sobre todas estas memórias e pensarmos, afinal, quantos/as mais de nós teremos histórias que poderiam perfeitamente ser denunciáveis? E entre as mulheres? E sobre as pessoas migrantes, LGBTIQA+, negras, ciganas e tantas outras pertencentes a minorias, quantas vezes vimos o contexto universitário a invisibilizar e/ou a difundir discursos estereotipados e violentos sobre estes/as? Quantas vezes também, fora das salas de aulas, as universidades abrigam igualmente situações de violências que — salvo recentes e ainda insuficientes campanhas de sensibilização e apoio — normalizam ou até racionalizam esta mesma violência neste contexto?
Dito isto, estaremos nós, então, realmente chocados/as com esta situação? Será que esquecemos o caso do docente da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, denunciado por mais de uma centena de alunos/as por atitudes de “incitação ao ódio, assédio e discriminação” (ano de 2021), ou do docente da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, que terá recusado entregar um exame a uma aluna pela forma como esta estava vestida (2021), ou outras tantas situações que, de tempos em tempos, vão surgindo, mas que se vão diluindo em actuações direccionadas?
Quantas mais situações (que certamente escondem tantas outras) terão de ser títulos nos jornais para que se compreenda que não basta tomar medidas avulsas sobre os casos que, apesar de tudo, irrompem?
É urgente assumir que há uma estrutura de privilégio e poder, veiculada sob diferentes eixos discriminatórios, e que esta está enraizada, também, dentro do ensino superior.
É urgente agir junto dos/as docentes de todas as áreas, intensificando competências pedagógicas, desconstruindo crenças, mitos e práticas conservadoras e discriminatórias, transformando-as em abordagens promotoras da igualdade, responsabilidade social e, em larga medida, dos direitos humanos.
É urgente criar um programa que defina padrões para as instituições de ensino superior construído sob uma abordagem interseccional e que se verta em programas de respostas institucionais sensíveis aos direitos humanos e à necessidade de especificação destes. É urgente que os planos das próprias instituições de ensino assumam e integrem de forma adequada a temática da diversidade social e, em largo espectro, demonstre uma consciência em torno dos direitos humanos e mesmo dos objectivos de desenvolvimento sustentáveis.
É urgente que os/as docentes tenham tempo e espaço para se aproximarem dos alunos/as, para ouvir sobre o mundo das pessoas que estão à sua frente e de partilharem e construírem conhecimento, indo além dos meramente teóricos/programáticos.
É urgente um ensino superior que seja um espaço seguro e que permita e promova, a quem nele se encontre, ter voz, criar, reivindicar e transformar.