Por que motivo a Europa não se consegue libertar do lobby do gás
A invasão da Ucrânia expôs a dependência da Europa do petróleo e do gás russos. A sua importação está a financiar directamente os esforços de guerra de Putin, no valor de 20 mil milhões de euros só em Março. A resposta da União Europeia (UE) – impulsionada por uma mistura de preocupações com a insegurança energética, aumentos de preços e instabilidade política interna, e a necessidade de desfazer a máquina de guerra russa – foi duplicar o consumo de gás de outras fontes e promover outras alternativas propostas pela indústria de combustíveis fósseis. Isto apesar do último relatório do IPCC [Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas] dizer que precisamos de cortar o uso de combustíveis fósseis, pois é “agora ou nunca” para evitar o desastre climático.
Então como é que a UE passou a depender não só do gás russo, mas de todo o gás fóssil? Foi uma consequência de como a indústria de combustíveis fósseis conseguiu cooptar com sucesso a tomada de decisões da UE. Ficou evidente logo em 2014, quando a Rússia ocupou a Crimeia, e continua hoje com o poderoso lobby do gás a moldar a resposta da Europa à crise da Ucrânia.
Como resultado desta “gastástrofe” que é o seu sequestro pelas grandes empresas, a UE continuará a alimentar o conflito (se não na Ucrânia, então no Iémen e noutros lugares), continuará a alimentar o caos climático, e continuará a falhar aos milhões que enfrentam uma crise crescente do custo de vida.
2014: largar o gás ou duplicá-lo?
A anexação da Crimeia à Rússia em 2014 obrigou a UE a pensar na redução da dependência do gás russo. Mas em vez de aumentar a energia eólica, das ondas e a energia solar, ou mesmo a eficiência energética – medidas que combateriam as alterações climáticas, a pobreza de combustível e a dependência do gás –, a UE duplicou a dependência do gás de outras fontes igualmente duvidosas. Foi dado apoio político e financeiro aos gasodutos do Azerbaijão e aos terminais de gás natural liquefeito (GNL) para poderem transportar gás de xisto obtido por fracturação hidráulica (ou fracking) proveniente dos EUA.
Este é o resultado directo da relação de co-dependência entre a Comissão Europeia e o lobby do gás. Um exemplo notável é como as mesmas empresas que constroem e operam gasodutos e terminais de GNL, como a italiana Snam, a francesa GRTgaz, a belga Fluxys, a espanhola Enagás, e a britânica National Grid, foram legalmente incorporadas na formulação de políticas da UE através da sua adesão à Rede Europeia de Operadores de Sistemas de Transmissão de Gás (ENTSO-G, sigla em inglês), um grupo criado pelas próprias instituições europeias.
O papel da ENTSO-G é o de prever a utilização futura do gás e propor projectos de infra-estruturas para lhe dar resposta, que os seus membros depois constroem. Não poderia haver um conflito de interesses mais óbvio. Sem surpresa, o grupo sobrestimou consistentemente a procura futura de gás. Como resultado, entre 2013 e 2020, a UE gastou 4500 milhões de euros em 44 novos projectos de infra-estruturas de gás, sendo 90% do dinheiro destinado aos próprios membros da ENTSO-G.
Assim, apesar da urgência da crise climática, a UE permaneceu dependente de um gás fóssil, cuja pegada de carbono pode ser tão má como o carvão. Graças à queda da produção interna e ao aumento da capacidade de importação de GNL, o gás russo preencheu a lacuna através da canalização e expedição do seu gás. Em 2021, as importações russas tinham atingido 40% do consumo total de gás da UE, um aumento para quase o dobro em relação a 2013. Isto não só constituiu um desrespeito pelos objectivos climáticos, como, ao não se afastar do gás, a UE tornou-se muito mais vulnerável às mudanças nos preços globais do gás, particularmente os preços de GNL, o que provocou uma escalada dos preços da energia no Outono de 2021, mesmo antes da invasão da Ucrânia.
2022: a história repete-se?
A UE está mais uma vez a tentar reduzir a sua dependência do gás russo; o último comunicado do RePowerEU (o plano criado pelas instituições europeias para aumentar a resiliência do sistema energético europeu e diversificar as fontes de gás) visa reduzir a procura em dois terços até ao final de 2022, e parar todas as importações de combustíveis fósseis – incluindo carvão e petróleo – até 2027. Mas as soluções propostas têm as impressões digitais do lobby do gás em todo o lado.
A trave-mestra do RePowerEU, que será completamente exposta até 18 de Maio, é a de obter petróleo e gás de fora da Rússia. Por exemplo, de outros regimes repressivos, tais como o Azerbaijão, Qatar ou Arábia Saudita, onde foram executadas 81 pessoas dias antes da visita do primeiro-ministro britânico Boris Johnson a Riade para pedir um aumento de produção.
O esforço de diversificação é acompanhado por um impulso enorme para novas infra-estruturas de gás por parte da indústria e da Comissão Europeia. Por exemplo, está a ser avaliada a construção de meia dúzia de novos terminais de GNL na Alemanha e a revitalização do MidCat, um gasoduto de Portugal a Espanha e depois a França, cujo projecto tinha sido arquivado. A ministra espanhola da Transição Energética, Teresa Ribera, manifestou-se totalmente a favor deste projecto derrotado, tendo mesmo criticado publicamente a França por não lhe ter dado mais apoio político.
O MidCat foi originalmente rejeitado pelos reguladores franceses e espanhóis, que, perante uma oposição generalizada e protestos populares, citaram oficialmente razões sócio-económicas para o fazer. Mas o desejo da Europa de se afastar do gás russo chegou mesmo a ver a NATO a discutir o gasoduto na véspera da invasão, como uma forma de levar o gás argelino através de Espanha para o resto do continente. Desde então, o primeiro-ministro português António Costa juntou-se também ao coro, apelando a mais interligações e infra-estruturas. Contudo, investigações recentes mostram que um maior apoio à eficiência energética e solar dos telhados poderia reduzir as importações de gás russo em dois terços nos próximos três anos, com a infra-estrutura existente a cobrir facilmente o resto.
O RePowerEU também estabelece metas enormes para as respostas tecnológicas do lobby do gás, como o hidrogénio e o biometano, que são um desastre climático, mas são altamente rentáveis para a indústria. O comunicado fala em mais 15 mil milhões de toneladas de hidrogénio “verde” de electricidade renovável até 2030, tanto nacional como importada, o que é mais do dobro do objectivo actual da UE.
Mas de onde virá a electricidade renovável, quando a UE já está a falhar os seus objectivos em matéria de energias renováveis? Actualmente, 97% do hidrogénio da Europa é produzido a partir de gás fóssil, em vez de electricidade renovável, e a Shell, a Equinor e outros produtores de gás estão confiantes de que o hidrogénio fóssil continuará a ser um recurso permanente. Admitem abertamente que não haverá electricidade renovável suficiente para produzir as quantidades de hidrogénio de que se fala, mas estão a utilizar o apelo do hidrogénio verde (feito a partir de energias renováveis) e o impulso mais amplo para um mercado de hidrogénio à escala da EU como um cavalo de Tróia para o seu próprio hidrogénio fóssil. Apesar disto, a Comissão Europeia está a avançar na sua direcção, porque a elaboração da sua resposta à invasão da Ucrânia está a ser criada de mãos dadas com o lobby do gás.
Entretanto, os objectivos de 2030 para o biometano também foram duplicados. A UE e a indústria afirmam que virá de resíduos agrícolas ou municipais, mas é mais fácil e mais barato produzir biometano de alta qualidade a partir de colheitas, provavelmente competindo com alimentos, como vimos nos anos 2000. Na altura, a produção de biocombustível a partir de colheitas levou a um aumento nos preços dos alimentos. Tendo em conta o facto de a pandemia e a guerra estarem a atingir os preços dos alimentos, e não apenas dos combustíveis, esta solução é profundamente míope.
Embora o comunicado da UE mencione a eficiência energética, em comparação com as versões anteriores, esta tem sido seriamente enfraquecida. De acordo com fontes próximas do processo de redacção, nem a Comissão Europeia nem os governos da UE confiam na eficiência energética para reduzir a dependência do gás, uma vez que esta “não é suficientemente concreta” em comparação com as novas fontes.
Passar do gás russo barato para o GNL caro e volátil, enquanto se constroem novas infra-estruturas caras, só vai exacerbar a crise do custo de vida, e, no entanto, o impacto social do plano não está a ser discutido. A oportunidade de o enfrentar através da eficiência energética, bem como através de um programa de isolamento habitacional em massa, que poderia ter treinado e dado emprego a milhares de trabalhadores, e teria reduzido as contas de gás e electricidade das pessoas, foi ultrapassada. É também uma oportunidade perdida para uma acção útil em matéria de clima.
Mesmo a proposta positiva de um imposto sobre grandes energias, apoiada por alguns governos nacionais, é de âmbito limitado, temendo-se que possa “desincentivar” as empresas de energia de investir em energias renováveis. Não poderia ser mais claro como a UE está a colocar os interesses da indústria do gás à frente do número crescente de pessoas em situação de pobreza energética, e da acção climática, devido à longa e incestuosa relação entre a indústria do gás e os decisores políticos.
O risco de dormir com a indústria do gás
O próprio comunicado do RePowerEU é uma prova do sequestro da política da UE pelas grandes empresas da indústria do gás, mas desde a invasão tem havido exemplos mais descaradamente públicos. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, escreveu um tweet em que falou abertamente sobre as suas reuniões acerca da redução da procura de gás com a Mesa-Redonda Europeia dos Industriais. Este é um grupo de lobby de directores executivos de empresas, cujos membros incluem a TotalEnergies, a BP e a E.On. Como resultado dessa reunião, anunciou publicamente que iria “criar um grupo de peritos industriais para ajudar a reduzir a nossa dependência [do gás russo]”.
A nível nacional, o director executivo da grande empresa italiana de petróleo e gás Eni tem estado numa digressão mundial ao lado do ministro dos Negócios Estrangeiros, [Luigi] di Maio, para assegurar novos fornecimentos de gás de países como a Argélia, Azerbaijão e Angola. Da mesma forma, o novo ministro alemão do Clima e da Economia Verde esteve no Qatar a assinar um acordo sobre o GNL.
O sequestro da UE pelas grandes empresas significa que a política energética da UE está a ser elaborada com e para a indústria do gás, ameaçando décadas de contínuo bloqueio de combustíveis fósseis. Se queremos acabar com a nossa dependência do gás, russo ou não, então precisamos de acabar com a relação entre a indústria de combustíveis fósseis e os decisores, cortando os interesses dos combustíveis fósseis do nosso sistema político. Em suma, precisamos de política sem combustíveis fósseis.