As ideias dos cidadãos (e não só) que vão orientar o futuro da Europa

A Conferência sobre o Futuro da Europa, que reuniu ideias de diversas fontes e debates a vários níveis sobre as políticas europeias, chega ao fim com um caderno de encargos recheado, que inclui até propostas para a revisão dos tratados. Leia algumas das propostas mais relevantes.

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Conferência sobre o Futuro da Europa Tiago Lopes

Encerrados os trabalhos da grande plenária da Conferência sobre o Futuro da Europa (CoFoE), que se reuniu pela última vez no final de Abril, a CoFoE caminha para o seu momento final, a 9 de Maio, numa cerimónia onde as propostas dos cidadãos, elaboradas ao longo de oito meses, serão incorporadas num relatório que entregue em mãos aos presidentes das três grandes instituições europeias: Parlamento, Comissão e Conselho da União Europeia.

O documento final aprovado na plenária tem 49 propostas divididas por 328 medidas concretas. Pede-se mais sustentabilidade social e ambiental, mais proximidade das instituições, mais coerência com os valores europeus tanto nas decisões internas como externas. Em suma, pede-se uma Europa que coloque o cuidado com as pessoas e as gerações futuras no centro das suas decisões. Muitas das propostas já fazem parte de planos e estratégias da União Europeia — que saem reforçadas na sua legitimidade , mas algumas das exigências dos cidadãos, para serem cabalmente cumpridas, poderão implicar mudanças nos tratados.

O Parlamento Europeu, aliás, já aprovou uma resolução para desencadear o processo que poderá levar à organização de uma convenção para revisão dos Tratados.

Mas em que consistem, então, as propostas da Conferência sobre o Futuro da Europa?

Clima

A transição ecológica é uma das grandes preocupações da Conferência. Um dos primeiros pontos abordados pelos cidadãos, muito influenciado pelo actual contexto de crise energética (agravada com a guerra na Ucrânia) é a aposta na segurança energética e nas energias renováveis (ou menos poluentes), garantindo a independência da UE no abastecimento das necessidades da população e das empresas. Exige-se ainda que, depois do período de transição, os combustíveis fósseis deixem de ser subsidiados, excluindo-se também o financiamento para “infra-estruturas tradicionais de gás”. A nível dos empregos que deverão desaparecer no decorrer desta transição, a CoFoE pede também que seja assegurada “uma transição justa, que proteja trabalhadores e postos de trabalho”.

A plenária acordou que é preciso uma aposta no transporte ferroviário, assim como uma “mudança cultural nos contextos urbanos, desde o automóvel individual até aos transportes públicos, à partilha de automóveis eléctricos e às bicicletas”. A plenária da conferência pede também que se promova uma consciencialização ecológica, incluindo campanhas sobre consumo e estilos de vida sustentáveis. Pede-se também uma aposta na economia circular, reduzindo o desperdício e apostando em produtos mais resilientes e ecológicos.

Várias destas medidas estão alinhadas com o que já está previsto no Pacto Ecológico Europeu, que inclui estratégias em diversas áreas, desde a agricultura e alimentação à gestão florestal e promoção da biodiversidade, passando pela pegada de carbono e a autonomia e eficiência energética.

Valores, Estado de direito e segurança

Uma questão gerou grande perplexidade nas pessoas que participaram nos Painéis de Cidadãos que o PÚBLICO acompanhou e que se vêem agora reflectidas nas propostas da CoFoE é a dissonância entre os valores defendidos pela União Europeia nos seus tratados e a pouca relevância que parecem ter em muitas das decisões tomadas, secundarizadas por interesses económicos ou políticos. “Os valores e princípios consagrados nos Tratados da UE e na Carta dos Direitos Fundamentais da UE são condições não negociáveis, irreversíveis e sine qua non para a adesão e pertença à UE”, enuncia uma das propostas.

Pede-se, por exemplo, que a UE aplique e avalie “eficazmente o âmbito de aplicação do Regulamento Condicionalidade e de outros instrumentos relativos ao Estado de direito”, ponderando inclusive através de alterações aos Tratados, se for necessário o “alargamento a novos domínios, independentemente da sua relevância para o Orçamento da UE”. Neste momento, note-se, o mecanismo de condicionalidade só pode ser activado se o incumprimento estiver relacionado com a execução de fundos.

A nível da segurança, fala-se ainda da protecção de dados (“mais protectora e mais orientada para os cidadãos”) e do combate à desinformação.

Democracia Europeia

Uma das grandes transformações ao longo dos meses de trabalho desde os Painéis de Cidadãos até às conclusões da Plenária foi na atitude dos cidadãos em relação à identidade europeia. São várias as propostas para tornar a UE mais “compreensível” e promover uma identidade comum, como mais formação cívica sobre a democracia europeia nas escolas, mais visibilidade nos media, ou mesmo declarar o Dia da Europa (9 de Maio) feriado a nível europeu.

A UE deve também promover uma “plena experiência cívica” entre os europeus, garantindo que a sua voz “seja ouvida também no período entre as eleições”, e que “a participação seja efectiva”.

A experiência dos Painéis de Cidadãos que levou à escala europeia, inédita, o que já se faz em assembleias de cidadãos por todo o mundo entusiasmou membros de todos os grupos, sendo uma das propostas mais unânimes a de que a UE realize “assembleias de cidadãos periodicamente, com base no direito da UE juridicamente vinculativo” algo que ainda não existe. Tal como aconteceu na conferência, pede-se que os participantes sejam seleccionados aleatoriamente, “com critérios de representatividade, e a participação deve ser incentivada”. Deve haver ainda um mecanismo para monitorizar as iniciativas legislativas nascidas destes processos participativos.

Há outros pontos cujo debate foi mais difícil, em particular sob o ponto de vista dos representantes do Conselho da União Europeia. Da proposta sobre democracia, no ponto em que se pedia a garantia de “protecção dos valores da UE consagrados nos Tratados, incluindo o Estado de direito e um modelo social forte”, foi retirada na última hora a menção à “abolição do direito de veto no Conselho da UE estabelecido no artigo 7.º”, instrumento à disposição da União Europeia contra países que violam os chamados valores europeus.

A CoFoE pede ainda que se reabra o debate sobre a Constituição da UE. Fala-se também no princípio de subsidiariedade, tornando mais claro “se as decisões têm que ser tomadas a nível europeu, nacional ou regional” Por fim, pede-se que o processo decisório da UE seja mais transparente, considerando-se que “todas as questões decididas por unanimidade deveriam ser decididas por maioria qualificada”, à excepção da admissão de novos membros à UE e a alteração dos princípios fundamentais da UE.

UE no mundo

Num dos dossiers mais marcados pelo contexto da invasão da Rússia à Ucrânia, a plenária da Conferência sobre o Futuro da Europa propõe “reduzir a dependência da UE de intervenientes estrangeiros em sectores economicamente estratégicos”, assim como a dependência energética.

Pede-se, aliás, uma política de comércio internacional mais ética e sustentável, não apenas em linha com o Pacto Ecológico Europeu e o Acordo de Paris, mas que garantam também de forma “eficaz e proporcional” o respeito pelos direitos humanos e a abolição do trabalho infantil.

Sobre a tomada de decisões em matéria de Política Externa e Segurança Comum (PESC), propõe-se que, em especial neste domínio, “questões actualmente decididas por unanimidade devem passar a decidir-se normalmente por maioria qualificada”.

Migrações

Em matéria de migrações, distingue-se entre três grupos: a migração legal, a migração irregular e o sistema de asilo.

Os membros da Plenária, em particular os cidadãos, revelam-se particularmente preocupados com a falta de solidariedade entre Estados-membros no que toca ao acolhimento de refugiados, apelando a uma “partilha equitativa de responsabilidades” e à revisão do sistema de Dublim, assim como à melhoria no acolhimento dos requerentes de asilo, dando particular atenção às grávidas e às crianças, em particular as que não chegam acompanhadas.

Por outro lado, sobre a chamada migração irregular, propõe-se um reforço da protecção das fronteiras externas da UE, “respeitando simultaneamente os direitos humanos” (considerando, por exemplo, que muitas destas pessoas acabam por ser vítimas de tráfico de seres humanos ou diversas formas de exploração). Reconhecendo a situação de muitos dos países de origem destes migrantes, recomenda-se uma participação mais activa da UE “no desenvolvimento económico e social” destes países.

Em matéria de imigração legal, a tónica está nas competências: garantir aos migrantes acesso ao mercado de trabalho, atraindo “as qualificações pertinentes de que a economia da UE precisa”.

Saúde

Na área da saúde, os cidadãos pedem igualdade de acesso à saúde para todos, incluindo “estabelecer um direito à saúde”.

A propósito de uma acção mais célere no que toca à disponibilidade de medicamentos, e “a fim de alcançar a necessária acção coordenada e a longo prazo a nível da União, a saúde e os cuidados de saúde devem ser incluídos entre as competências partilhadas entre a UE e os Estados-membros, alterando o artigo 4.º do TFUE” (Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia). Neste momento, a saúde (à excepção da saúde pública) é de competência exclusiva dos Estados-membros; as competências partilhadas são aquelas em que a UE poderia intervir nos casos em que uma acção coordenada seja mais eficaz do que a de um Estado-membro individualmente.

As propostas estão também em concordância com a abordagem holística da União Europeia, nomeadamente no que toca ao conceito de “Uma Só Saúde”, que considera que a saúde e o bem-estar dos cidadãos não estão desligados das questões ambientais e também do bem-estar animal.

Os cidadãos pedem que os estilos de vida saudáveis sejam promovidos a nível europeu, incluindo a educação sexual, uma questão que gera debates acalorados em muitos países. Outro dos tópicos apontados é a saúde mental, no qual os cidadãos propõem mesmo que se considere um Ano Europeu da Saúde Mental.

Transformação digital

“A igualdade de acesso à Internet é um direito fundamental de todos os cidadãos europeus”, defende o relatório final da CoFoE. A plenária da conferência exige, assim, que crianças, famílias, pessoas idosas e grupos vulneráveis sejam prioritários no acesso à Internet e a equipamentos, tendo em vista garantir o acesso à educação, à saúde e aos serviços públicos cada vez mais digitalizados.

Pede-se, no essencial, uma “digitalização centrada no ser humano”, incluindo uma regulação do teletrabalho e do “trabalho inteligente” que tenha em conta “o impacto na saúde física e mental dos trabalhadores” garantindo, por exemplo, o direito a desligar , a supervisão humana dos processos de tomada de decisão que envolvam a inteligência artificial no trabalho, ou garantir a inclusão digital dos trabalhadores.

Há ainda uma nota sobre “tornar a transformação digital sustentável e lutar por uma sociedade digital ecológica”, nomeadamente tendo em conta “os impactos ambientais das infra-estruturas digitais e da digitalização”, olhando também para a chamada “mineração” de criptomoedas, “que usam uma enorme quantidade de electricidade”.

Economia, justiça social e emprego

Em linha com a orientação das instituições na Cimeira Social do Porto, as propostas da CoFoE apontam no sentido de uma Europa mais focada nas necessidades dos cidadãos, em particular os mais desprotegidos. Um dos pedidos é “não comprometer os direitos sociais (saúde pública, educação pública, políticas laborais)”, ao qual se acresce assegurar o acesso dos cidadãos “a uma habitação digna, de acordo com as suas necessidades”.

Outra alínea pede medidas para “harmonizar as condições de vida em toda a UE”, incluindo “aumentar e facilitar o investimento público directo nos domínios da educação, a saúde, a habitação, as infra-estruturas físicas, os cuidados aos idosos e às pessoas com deficiência”.

Referindo um modelo de crescimento sustentável e resiliente, propõe-se uma “dimensão social forte no Semestre Europeu”. Uma das orientações que poderá ter influência em processos que já estão em curso é o apelo a um salário mínimo europeu. A Comissão já apresentou uma proposta de directiva que já conta com uma posição do Parlamento Europeu, mas adivinham-se grandes resistências de vários países.

Os cidadãos também pedem “a inclusão de normas sociais, laborais e sanitárias ambiciosas, incluindo em matéria de saúde e segurança no trabalho, nos novos acordos comerciais da UE”. Há ainda espaço para falar de equidade e de igualdade de oportunidades, combatendo a discriminação de género, em função da idade (tanto dos jovens como das pessoas mais velhas) ou das pessoas com deficiência. Uma das propostas com origem na plataforma online multilingue remete para a “transição demográfica”, com foco no reforço da oferta de creches, melhores condições para licenças de parentalidade e também de habitação.

No campo financeiro, pede-se um reforço do combate à evasão fiscal e uma maior harmonização da política fiscal dentro da UE, limitando os paraísos fiscais.

Educação, cultura, juventude e desporto

No domínio da educação, pede-se a introdução de competências partilhadas “pelo menos no domínio da educação para a cidadania” , sublinhando que “o exercício de competência pela UE não pode impedir os Estados-membros de exercerem a sua competência.”

Sugere-se uma maior harmonização no reconhecimento de diplomas e competências. No rescaldo da pandemia e do ensino através de plataformas online, propõe-se mais apoio à formação de professores para o uso das tecnologias, além de garantir que todas as crianças e famílias têm acesso ao equipamento e a uma ligação à Internet eficiente.

A cultura e o desporto são vistos como elementos importantes não apenas para o desenvolvimento dos indivíduos, mas como uma via de intercâmbio e um factor de união.

Por fim, um dos elementos mais importantes da CoFoE: a juventude. Os jovens, que tiveram uma representação generosa nos Painéis de Cidadãos, fizeram-se ouvir nas propostas de todos os grupos de trabalho. Nas propostas específicas sobre este grupo, assinala-se que é preciso mais apoio a nível da formação e da entrada no mercado de trabalho, reconhecendo também o papel das organizações juvenis na promoção das iniciativas já existentes junto de públicos diversificados.

E se no grupo dedicado à democracia a redução para 16 anos da idade para votar também foi retirada do documento final por opção do Conselho da UE, com a anuência de vários cidadãos, no grupo dedicado à Juventude recomenda-se que “a votação nas eleições para o Parlamento Europeu a partir dos 16 anos de idade seja debatida e ponderada”. E fica ainda uma nota para os partidos políticos nacionais: “Devem assegurar que as suas listas de candidatos para as eleições europeias incluam candidatos mais jovens.”

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