Amazónia
Na Amazónia, as redes têm cada vez menos peixe: “O nosso principal rendimento está acabando”
A pressão do agro-negócio, da siderurgia, mineração e da produção de energia sobre territórios e recursos hídricos tem vindo a provocar uma avalanche de violência e impactos ambientais na Amazónia maranhense. Pescadores apontam o dedo às torres eléctricas da EDP Energias do Brasil, que refuta as acusações. Reportagem realizada com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF), em parceria com o Pulitzer Center
As seculares fachadas de azulejos portugueses no Centro Histórico de São Luís, Património Cultural da Humanidade, encantam turistas do mundo inteiro. Mas a capital do Maranhão é também ponto de convergência das tensões oriundas do agro-negócio e dos grandes projectos de infra-estruturas.
Cidade insular, São Luís é conectada ao continente pela ponte sobre o Estreito dos Mosquitos, adjacente ao Campo de Perizes, através da BR-135. Essa parte da rodovia é uma espécie de “garganta” que liga o continente ao complexo portuário do Itaqui, por onde escoam as commodities da Vale, da Alumar (Consórcio de Alumínio do Maranhão) e do Matopiba.
A pressão do agro-negócio, da siderurgia, mineração e da produção de energia sobre territórios e recursos hídricos onde vivem povos tradicionais tem vindo a provocar uma avalanche de violência e impactos ambientais na Amazónia maranhense. O conflito mais recente envolve uma linha de transmissão da holding EDP Energias do Brasil S/A e as comunidades de pescadores de Santa Rita, a 70 quilómetros de São Luís, e dos municípios vizinhos de Anajatuba e Itapecuru-Mirim.
Nessa região, as principais fontes de sobrevivência são o cultivo de peixes em açudes artesanais e a agricultura familiar, afectados pelas obras de implantação das torres e cabos da linha de transmissão ao longo de 59,5 quilómetros no interior dos campos naturais.
Em nome de 434 pescadores de 51 povoações atingidas pela linha de transmissão nos municípios de Santa Rita, Anajatuba e Itapecuru-Mirim, as advogadas Carla Dias e Júlia Zenni apresentaram em Outubro de 2021 pedidos de investigação no Ministério Público Estadual e no Ministério Público Federal para obrigar a EDP Energias do Brasil a executar medidas de mitigação, compensatórias e desenvolver programas ambientais, em busca de “reparação no âmbito individual e a protecção do meio ambiente na esfera dos direitos colectivos”, diz Carla Dias. Incluem relatos de pescadores e agricultores, fotografias e vídeos registados nas obras que demonstram a utilização de maquinaria pesada durante a migração dos peixes do rio Mearim.
Segundo os levantamentos apresentados às duas instâncias, a produtividade pesqueira de 790 açudes computorizados ao longo dos campos alcançou 176 toneladas em 2020, caindo vertiginosamente em 2021. Os moradores atribuem a fuga dos peixes ao tráfego de tractores, guindastes e outras máquinas de grande porte que revolveram o material orgânico nos campos e bloquearam cursos de água, dificultando a circulação dos cardumes e a reprodução.
Sentados na varanda após um dia de trabalho, António José (Toca) e Carlos Augusto contemplam a chuva intensa no campo de Papagaio, enquanto recordam os tempos fartos de pesca – até conseguiam capturar certas espécies no quintal de casa, na época de cheias. Em Ponta Grossa, Josemar Mendes e Raimundo Nonato dos Santos partilham os lamentos. “Nossa principal fonte de rendimento está acabando”, repudia Santos.
Aos 70 anos, a agricultora Rosa Maria Vera Dias tem a pele enrugada pela lida no sol desde criança. Fica triste ao falar da carência dos peixes, recordando que chegava a tirar até uma tonelada do alimento por ano nos três açudes da sua família. “Tudo isso, essa falência da pescaria, está acontecendo depois das torres. Antes, não era assim.”
Os campos são protegidos por legislação estatal e até internacional, como a Convenção sobre as Zonas Húmidas de Interesse Internacional ou a Convenção de Ramsar. Um parecer técnico do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) centra-se em duas referências científicas para explicar a relação de causalidade entre a instalação de linhas de transmissão em ambientes aquáticos e a fuga de peixes.
Em comunicado enviado pela assessoria de comunicação, a EDP Energias do Brasil refuta as acusações: “A EDP tem a preservação da vida no centro de sua estratégia de sustentabilidade e posiciona a biodiversidade como elemento essencial às operações e à geração de valor. A empresa desenvolve uma série de iniciativas e assume compromissos que visam à protecção do meio ambiente e, para isso, integra os princípios do desenvolvimento sustentável nos processos de todas as áreas da companhia, com o objectivo de avaliar, controlar, mitigar e compensar os impactos ambientais relacionados às actividades da empresa ao longo de toda a cadeia de valor.”
A fartura de água e terras nos campos naturais gera tensões em regiões próximas. Os campos naturais são contíguos à faixa amazónica da Área de Protecção Ambiental da Baixada Maranhense, território com quase 1,8 milhão de hectares cobiçado para a pecuária nas fazendas e criação de búfalos, o que tem provocado conflitos entre produtores de gado e as comunidades, que até já derrubaram as cercas electrificadas para retomar as fontes de alimento, sendo agora alvo de violência. Só no município de Arari, registaram-se cinco assassinatos de camponeses nos últimos dois anos, segundo os relatórios Conflitos no Campo Brasil 2020 e 2021, produzidos pela Comissão Pastoral da Terra.
Para o assessor jurídico da Fóruns e Redes de Cidadania, Iriomar Teixeira, a retoma dos territórios ajudou a melhorar as condições de vida das comunidades. Uma das principais actividades económicas, a criação de porcos, teve novo impulso com os campos livres, provocando a ira dos fazendeiros e da elite política da região. “O divisor de águas foi a luta organizada pela retirada das cercas, recolhimento dos búfalos em currais e a recuperação do território pelas comunidades. Por isso, tanta ira. Os ricos jamais se contentam em perder para os pobres. Quando isso acontece, partem para a eliminação física das lideranças e é isso que está acontecendo em Arari”, denunciou Teixeira.