Há precariedade nos semáforos: a arte da sobrevivência
Ninguém sabe quem e quantos são e como vivem os artistas de rua. Sabemos apenas o que vemos: são artistas da sobrevivência à mercê da boa vontade dos que apaticamente enfileirados assistem ao espectáculo da precariedade da cultura em Portugal, ao ritmo luminoso de um semáforo.
São 8h30. Num semáforo perto do Centro Comercial Colombo, em Lisboa, um artista de rua prepara-se para mais um dia de trabalho. Vestido a rigor, espera que o semáforo feche para subir a uma escada onde, em equilíbrio, faz malabarismo em frente a um público automobilizado e involuntário — e, portanto, difícil. É um número perigoso a vários níveis. Numa sincronia perfeita, a sua arte prolonga-se ao malabarismo de saber quando o semáforo vai abrir e o tempo necessário a, sem ser atropelado, rapidamente correr, por entre alguns carros e, com sorte, receber qualquer coisa em troca do entretenimento que voluntariamente ofereceu. Tudo é mentalmente cronometrado ao segundo, mas, como disse, é um público difícil. Porque raio há-de pagar por algo que não pediu e que, de qualquer das formas, pode usufruir gratuitamente? E para mais está rabugento por causa do trânsito e atrasado para o trabalho. Cada um com os seus problemas. Só a empatia ou mesmo a pena movem a generosidade. Mesmo esses sentimentos são geralmente invadidos pela auto-comiseração: “Se ao menos tivesse moedas…”
É hora de almoço. O artista lá continua, no calor abrasador do sol do meio-dia, transpirando em bica nas suas pesadas vestes de espectáculo, em loopings contínuos de actuações. Pergunto-me se terá já dinheiro para almoçar. Talvez não, mas agora pelo menos tem companhia. Num semáforo oposto, outro artista de rua faz o seu número que, por acaso (ou não), é também de malabarismo. Mas há de tudo. A cena repete-se por toda a cidade. Há dias e há semáforos em que temos a oportunidade de ver cuspidores de fogo, músicos, marionetistas, entre outros números cénicos e circenses. Certa vez parei num semáforo em que era o único carro. Sentado na berma do passeio estava um violinista que, sem se levantar e com ar desolado, me disse “Tem a sorte de ter um concerto só para si”, e depois começou a tocar Nocturne de Chopin. Dei-lhe 20 cêntimos. Era o que tinha… São artistas predominantemente jovens e talentosos, por vezes virtuosos até, como era o caso do violinista que relatei. Mas mesmo aqueles que colocam a máscara do sorriso, não conseguem esconder o desânimo. Mais do que o número que apresentam, o virtuosismo da sua arte é o da sobrevivência.
Muitos deles foram empurrados para os semáforos pela pandemia. Porém, a cultura em Portugal sofre de um outro vírus: o da precariedade. Os artistas de rua e, em particular, os que recorrem ao semáforo como sua sala de espectáculos improvisada, são só o expoente dessa precariedade. Para além de tardios, os apoios governamentais à cultura durante a pandemia ficaram marcados por queixas do sector sobre os valores e os apertados prazos de candidatura, sendo que os artistas de rua em específico ficaram mesmo de fora desses apoios. Num estudo realizado em 2018 para a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), a precariedade era já muito claramente um traço do perfil dos autores em Portugal. Nesse trabalho, era alertada a necessidade urgente de um “estatuto do artista” que conferisse protecção social e laboral a um sector marcadamente instável e precário.
A criação de uma lei que reconhecesse e respondesse às vulnerabilidades associadas a esse estatuto era já, de resto, reivindicada há vários anos pelos profissionais ligados ao sector da cultura. Numa tentativa de salvar a imagem, a criação do Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura (Decreto-Lei n.º 105/2021) foi a grande bandeira da pasta da cultura do anterior Governo. Mais uma vez, os artistas de rua ficaram excluídos deste estatuto. Ninguém sabe quem e quantos são e como vivem. Sabemos apenas o que vemos: são artistas da sobrevivência à mercê da boa vontade dos que apaticamente enfileirados assistem ao espectáculo da precariedade da cultura em Portugal, ao ritmo luminoso de um semáforo.