A leitura como Ítaca, longa viagem em que nos demoramos

Não é de hoje a indignação crítica perante a guerra e a destruição e o sofrimento que aquela protagoniza. Com a guerra, toda a tranquilidade se interrompe, o mínimo de bem-estar definha.

Ítaca de luz e sol é minha casa. /[…] /
e não sei de outro lugar tão suave sobre a Terra.
Homero, Odisseia, canto IX

Seduziu-me desde sempre a palavra Viagem pela sua multiplicidade de significados, com realce para a poderosa metáfora que encerra, dizendo respeito à nossa passagem pelo mundo, repleta simultaneamente de escolhos e de profundas alegrias, numa miríade de atitudes e sentimentos que definem o ser humano. Antes e depois de Cristo, e ao longo de séculos, o seu significado não se alterou substancialmente: migração, aventura, busca ávida de espaço e de domínio comercial, procura de um “paraíso”, expansão religiosa ou ainda peregrinação, como forma de expiação ou de encontro com o divino.

Nas suas múltiplas variantes, a viagem subentende, simultânea e naturalmente, o desejo e o prazer de contar e de ouvir, numa estreita e benéfica cumplicidade que se concretiza entre quem sai e quem fica. O verso do poeta francês Baudelaire, “… digam, o que é que viram?”, a propósito da viagem, é bem expressivo da intensa curiosidade dos que, ficando, procuram receber a novidade ou a modificação operada algures, através do olhar de quem as presenciou. Um verso continuamente repetido no tempo, porque assim é a eterna curiosidade humana, sob formas simplificadas: “Como foi?”, “Gostaste de ir?”, “Ainda está na mesma?”, “E a comida, como é?”, “Como são as pessoas?”. Experiências marcadas pela novidade e pelo fascínio daí resultante, no contacto com outras terras, pessoas, costumes e natureza, proporcionando não só a aproximação com o Outro, por conhecer ou já conhecido, mas também a intensificação do estudo e do conhecimento, não podendo excluir-se dessa aventura a agressividade e a violência, ditadas comummente pela ganância do poder e da riqueza, o que lamentavelmente é intrínseco a quem se alimenta de narcisismo, imunizando-se perante o sofrimento de quem espezinha.

Mantêm-se estes comportamentos e atitudes ao longo dos diferentes tempos que a História relata e a Arte grava poeticamente, transformando o efémero em eterno, e por isso mesmo não nos surpreende, antes comove, a afinidade entre um texto literário datado de antes de Cristo e um outro do século X ou XVI ou do séc. XX ou XXI, a propósito de determinada circunstância da vida humana. Não é de hoje, por exemplo, a indignação crítica perante a guerra e a destruição e o sofrimento que aquela protagoniza, mudando drasticamente tudo de um momento para o outro, num doloroso contraste com a paz e a simples vida quotidiana, repleta de pequenas e grandes coisas, e da qual os que massacram parecem inexplicavelmente sentir inveja. Com a guerra, toda a tranquilidade se interrompe, o mínimo de bem-estar definha, não havendo lugar para pensar na justiça nem tempo para escutar a voz do artista ou da sabedoria. Ouçamos, entre muitos que a propósito do tema escreveram, o poeta romano Quinto Énio (239 a.C. - 169 a.C.): “A sophia, a que chamam sabedoria, ninguém/ a viu em sonhos, antes de começar a aprendê-la./ (…) Do meio se expulsa a sabedoria, actua-se pela força,/ despreza-se o bom orador, preza-se o hórrido soldado./ Combatendo com palavras indoutas e malévolas,/ entre si se misturam, levantando animosidades;/ não desafiam segundo o direito, mas antes pelo ferro/ exigem os bens, reclamando o reino, com forte violência.”.[1]

Com igual mestria, servindo-se de forma humanista do olhar do vencido, reflecte Luís de Camões (1525 – 1580) sobre o mesmo tema, na sua epopeia, relato da “Batalha de Aljubarrota”: “Alguns [os castelhanos] vão maldizendo e blasfemando/ Do primeiro que a guerra fez no mundo;/ Outros a sede dura vão culpando/ Do peito cobiçoso e sitibundo,/ Que, por tomar o alheio, o miserando/ Povo aventura às penas do Profundo,/ Deixando tantas mães, tantas esposas,/ Sem filhos, sem maridos, desditosas.”[2]

Mais perto de nós, Fernando Pessoa (1888- 1935), ortónimo e heterónimo, incide igualmente sobre a barbárie que a guerra representa, tendo nós optado pela voz do seu Mestre, Alberto Caeiro: “A guerra, como tudo humano, quer alterar./ Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito/ E alterar depressa.// Mas a guerra inflige a morte./ E a morte é o desprezo do Universo por nós./ Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa./ Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.// Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.”

É ainda Fernando Pessoa que nos faz reflectir indirectamente sobre a viagem, enquanto expressiva metáfora da vida, remetendo para o autor da Ilíada (do grego Ilion – cidade de Tróia) e da Odisseia (do grego Odisseu, latinizado Ulisses): “Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta qualquer coisa que se note que existiu Homero”. Homenageando desta forma o poeta grego (928 a.C.– 898 a.C.) cujas epopeias implicam, respectivamente, a guerra de Tróia e a viagem tumultuosa de Odisseu de regresso a Ítaca, Pessoa releva a forte influência cultural dos gregos que, segundo as suas palavras, do sentido das quais é universal partilharmos, “ainda nos governam de além dos próprios túmulos desfeitos”. Não só a guerra e os motivos amorosos que a engendram, juntamente com a multiplicidade de relações e sentimentos que determinam, dizem da vida e da condição humanas, mas também, e sobretudo, o relato e a descrição acidentada da longa viagem de 10 anos de Ulisses, no seu regresso a Ítaca, ansiando pelo encontro com Penélope e o filho de ambos, Telémaco, após a vitória da guerra de Tróia cuja duração foi também de 10 anos.

Histórias antigas, e sublimes pela sua “emoção estética”, que influenciaram, e assim continuará a ser, um indefinido número de artistas de que destaco, por me ser muito caro, o poeta da diáspora grega de Alexandria, Konstantinos Kaváfis (1863-1933), que no seu poema Ítaca, “conhecendo o conhecido, o transforma e varia”, pluralizando o seu significado: “Quando saíres a caminho da ida para Ítaca,/ faz votos para que seja longo o caminho,/ cheio de aventuras, cheio de conhecimentos”. A este propósito, é-me impossível deixar de referir a editora Ítaca que na primeira página dos seus livros guarda, tal mensagem de boas-vindas à leitura, os belos versos que acabei de transcrever, juntando-se ainda a esse facto o prazer que nos dá de ler um texto não submetido à vilania da imposição do novo acordo ortográfico de 1990.

A leitura como Ítaca, lugar suave à nossa disposição e longa viagem em que nos demoramos, por muitos e muitos anos, envolvendo-nos, sem pressas, em aventuras várias, contadas por alguém que propiciando respostas a perguntas e preocupações nos enriquece e transforma, abrindo-nos simultaneamente portas a encontros de amizade que perduram ao longo da vida.


[1] Poema épico de Quinto Énio ,Anais, VII, in Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica”, II Volume – Cultura Romana. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, pág. 68.

[2] In Os Lusíadas, Canto IV, estrofe 44.

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