A criança no trono

A primeira vítima de ser uma criança mimada e caprichosa será ela própria. Mais tarde compreenderá, num processo nem sempre pacífico, que nunca terá tudo o que entender lhe ser devido. Estamos a criar seres infelizes e frustrados, incapazes de resistir a uma situação menos bem conseguida.

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As mães arrastam consigo um sentimento de culpa, por terem de trabalhar fora de casa e de deixar os filhos ao cuidado de terceiros, o que potencia o consentimento de gritos, birras, amuos Johnny Cohen/Unsplash

A infantolatria, termo derivado de infância e de idolatria, foi identificada por Jean-Jacques Rousseau, no século XVIII, quando, na sociedade da época, os filhos eram vistos como “deuses” e as mães como “santas”.

Esta corrente filosófica defendida por Rousseau desresponsabilizava a criança de quaisquer comportamentos inadequados e colocava os pais na situação de súbditos às ordens dos seus mais pequenos, valorizando excessivamente as suas atitudes, o que potenciava a criação de adultos arrogantes e inflexíveis, por terem e sentirem todas as suas necessidades resolvidas.

Segundo Cotta Ribeiro, “o comportamento que denominamos de infantolatria é consequência de uma atitude de idolatria, uma paixão exagerada e excessiva por um objeto, a criança, ou melhor, a infância, considerada pelos adultos como o paradigma do tempo feliz, pelo qual nutrem uma nostalgia e um desejo de retorno”.

No século XX, com a entrada das mulheres no mercado de trabalho, esta ideia da “mãe santa” deixou de fazer sentido, devido à luta desenvolvida pela emancipação.

O que tem vindo a acontecer é que, ainda hoje, assistimos a este tipo de padrão, uma vez que as mães arrastam consigo um sentimento de culpa, por terem de trabalhar fora de casa e de deixar os filhos ao cuidado de terceiros, o que potencia o consentimento de gritos, birras, amuos, pensando estarem assim a compensá-los da sua ausência. Nada de mais errado, nada de mais negativo.

Outra condicionante reside no modelo de educação autoritária a que muitos pais foram sujeitos. Para fugirem dessa matriz e não a replicarem, muitos pais acabam por ser demasiado condescendentes, abrindo caminho a que se tornem reféns emocionais dos filhos, acedendo a todos os seus caprichos, não só em casa como nas suas vidas. Tudo gira em torno do que a criança gosta e deseja, fazendo com que os pais abram mão, constantemente, das suas preferências para atender os pedidos do/a filho/a.

É esperado, nos primeiros anos de vida, que a família viva em função da criança e responda às suas necessidades. Mas a verdade é que os especialistas alertam para o facto de, a partir dos dois anos de idade, a criança já compreender que faz parte da família e é mais um elemento do agregado. É ela que tem de se adaptar às rotinas da casa e não o seu contrário. As atividades devem incluir a criança e não ser definidas em função dela ou por ela.

É a partir dessa idade, quando já — e porque já — adquiriu o desenvolvimento suficiente para perceber a existência de um mundo à sua volta, em que as pessoas têm interesses e necessidades diferentes, que a criança já é capaz de suportar e compreender a definição de “Não!”.

O que acontece, cada vez mais, é que a criança passa a ser, em muitos casos, “o rei” ou “a rainha” que, do seu trono, dita as leis pelas quais a família se deve reger.

Mas sejamos justos: a criança não é o centro da família porque quer, mas, sim, porque há um adulto que o permite. Por vezes, os pais só se dão conta disso quando a parte social da criança sinaliza que há algo errado.

Com maior ou menor frequência, ouvimos pais aceitarem a condição de que os filhos “comandam a vida familiar”. Se essa posição faz sentido durante o primeiro ano de vida, quando o bebé necessita de um conjunto de cuidados permanentes, tal postura deve ser alterada à medida que a criança vai ganhando autonomia.

Não é recomendável que os pais permitam que a criança cresça num ambiente em que tudo gira à sua volta, o que diminuirá, de futuro, a sua capacidade resiliente, não a preparando para os muitos “nãos” que ocorrerão, naturalmente, na vida adulta.

Esta posição não quer dizer que os pais não se preocupem com os filhos, não tentem adequar os seus interesses às necessidades dos mais pequenos. Trata-se, sim, de limitar um excesso de comando por parte da criança, para que tal não a venha prejudicá-la na fase adulta.

O “Não” enérgico, seguido da sua explicação, ajudá-la-á a corrigir o comportamento, a estabelecer limites. Não ceder às suas manhas, birras, pequenas chantagens e mimos, terá de ser uma atitude que potencie a construção da sua personalidade. Os pais podem e devem colocar regras e limites em todas as atitudes das crianças, fazendo-as perceber que algumas “coisas” podem, “outras” não. Há que impor regras e fazê-las cumprir.

A primeira vítima de ser uma criança mimada e caprichosa será ela própria. Mais tarde compreenderá, num processo nem sempre pacífico, que nunca terá tudo o que entender lhe ser devido. Estamos a criar seres infelizes e frustrados, incapazes de resistir a uma situação menos bem conseguida.

Um avanço civilizacional foi alcançado quando as ciências da educação provaram que a punição física não altera comportamentos. Hoje, a violência sobre a criança é vista como crime, moral e socialmente reprovável, pois estamos a usar a força sobre alguém que não se pode defender de igual para igual.

Está enraizado na perceção paternal que contrariar as crianças as pode traumatizar. Ora, Freud deixou claro que “sem trauma não há crescimento”. A ideia de que a criança não pode “sofrer” nada, não pode se contrariada, é que as transforma em pequenos ditadores.

Numa família com um relacionamento saudável, a criança tem de se adaptar à dinâmica da família e à rotina dos adultos e não o seu contrário.

Aos pais cabe auxiliar os filhos a desenvolverem competências sociais e a estruturarem comportamentos de autoconfiança, para conviverem em família e mais tarde em sociedade.

Quantas vezes as atividades da família passam a ser definidas em função da criança rei/rainha? Quantas vezes as músicas ouvidas no carro, o canal de televisão selecionado ou o espaço de toda a sala é ocupado permanentemente pelas suas preferências?

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Lobacheva Ina/Unsplash

A piorar a situação, casos existem em que a criança entende não dormir, não permitindo aos pais tempo e espaço para estarem sós, verem a sua série preferida ou lerem um livro. Isto porque não permitem que aconteçam momentos em que elas não participem. Em resumo, são as crianças que comandam o que acontece e o que deixa de acontecer em casa.

Não nos devemos esquecer que a criança transporta para a escola aquilo que aprendeu em casa, e ser-lhe-á doloroso compreender que não é o centro do mundo e que terá de descer do trono para se colocar a par de todos os colegas, iguais em valores, direitos, opiniões e oportunidades.

Sabemos não ser possível manter por muito tempo este estatuto, uma vez que o “reinado” termina quando da entrada na creche, onde terá de se confrontar quer com a rejeição dos outros, por querer mandar em tudo e em todos, quer com a sua falta de capacidade para se relacionar e acatar as orientações do estabelecimento de ensino.

Os primeiros sinais de que algo está a falhar na educação são os alertas da escola dando conta de falta de cumprimento de regras, de dificuldade no relacionamento com os pares e de incapacidade para respeitar os demais adultos.

É sabido, também, que a infantolatria tende a ser exercida por pais com perfil permissivo. A permissividade parental é típica de pais que são extremamente focados no bem-estar dos filhos, que procuram a todo o custo eliminar ou minimizar as possibilidades de frustração. São pais que se transformam em recursos infindáveis para atender a todas as necessidades e desejos dos filhos.

Os pais tornam-se verdadeiros súbditos desses reis e rainhas, que saíram da barriga materna e que governam a família, muitas vezes, até, com uma certa dose de tirania.

Se muitos pais sabem que, aos poucos, devem separar os interesses da criança dos seus, fazendo com que cada um respeite o seu espaço e tempo, ainda são muito significativos os casos de famílias que vivem verdadeiros dramas sem saber como contornar esta situação.

A criança que encara o mundo em função do seu umbigo acredita que todos têm de parar para ela passar, ignorando os direitos dos outros. Com este pensamento, terá muitas dificuldades em viver uma realidade diferente.

Caso não aceite as regras definidas, será rejeitada e com certeza não entenderá o porquê de não poder fazer tudo o que quer, como faz em casa. A mudança será dolorosa e penalizante.

Para que tal não se verifique, torna-se necessário tirar a criança do trono.

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