Tudo bem, desde que... A coleção Ellipse e o seu futuro

A anunciada aquisição e integração num futuro museu da colecção associada a João Rendeiro será um enriquecimento para o património museológico do nosso país. Mas a chamada Coleção Berardo tem de ser mantida como núcleo constitutivo fundamental desse museu a criar.

A Fundação Ellipse foi constituída por João Rendeiro em 2004. Aparentemente consolidado como banqueiro, movia-o então um interesse crescente pela arte, que para ele coincidiu com um misto de ambição e de desejo de reconhecimento social, especialmente na cena artística internacional. Por isso, as intenções nunca foram objetivas e deixaram um rasto de ambiguidade e fluidez, balanceando-se entre o investimento financeiro, a ser colocado junto de interesses privados, e uma coleção de que fosse proprietário. A ambiguidade permaneceu até novembro de 2008. No final, pouco mais de quatro anos após o início desta história, foi o Banco Privado Português (BPP) que ficou proprietário de 85% da entidade que possui o acervo. E não são públicas nem as razões desta decisão, nem o seu preço, tal como não é público a quem pertencem os restantes 15%.

De imediato tudo parecia correr bem e em tom de celebridade. As compras iniciaram-se ainda em 2004, tendo João Rendeiro por consultores Manuel E. González, Alexandre Melo e Pedro Lapa. Ao longo de cerca de três anos, foi reunido um vasto acervo, adquirido em galerias e leilões, marcado pelo gosto e pelas modas da cena artística nova-iorquina da primeira década do século XXI.

Em 2006, o acervo foi tornado público. Abria um centro de arte instalado em edifício próprio em Alcoitão, com cerca de 3500 metros quadrados. Sucederam-se as exposições, com acolhimento favorável e críticas positivas, portuguesas e estrangeiras. A Artforum apresentava-a, em outubro de 2006, como uma das coleções mais relevantes do início do século XXI. Afirmava-se também, numa curiosa manobra de colagem, que, em termos da afirmação da arte contemporânea, Portugal não tinha este nível de atenção internacional desde a inauguração do Museu de Serralves, no Porto, em 1999.

Em novembro de 2008, o Banco de Portugal afasta João Rendeiro da direção do BPP e é nomeada uma administração provisória, que se mantém em funções até 2010. Ainda em 2008, é solicitada pelo BPP a primeira avaliação do acervo, realizada pela Sotheby’s, uma das três entidades com credibilidade internacional para o fazer, para além da Christie’s e da Phillips.

É com base nesta avaliação que a referida administração provisória decide pôr à venda a pintura Country Nurse (2003), de Richard Prince, que havia sido comprada na Gladstone Gallery, em 2004. O resultado desta venda, em 30 de junho de 2009, cerca de 1,6 milhões de euros, serviu para manter o BPP a funcionar até à entrada em actividade da comissão liquidatária. E pode admitir-se que, neste momento ou mais tarde, mais algumas vendas tenham sido feitas.

A comissão liquidatária decidiu realizar uma nova avaliação em 2011, mais uma vez solicitada à Sotheby’s. O acervo, fechado desde 2008, compreendia então 797 obras de 161 artistas, distribuídas pelas seguintes técnicas: a fotografia reúne 405 peças, representando 50% do acervo; a escultura e a instalação perfazem 145 peças, correspondendo a 18% da coleção; o desenho com 117 obras, o equivalente a 15%; o vídeo comporta 68 peças, ou seja 9%; e, finalmente, a pintura com 62 obras, 8% do acervo. Esta distribuição, segundo os respetivos suporte e técnica, reflete a moda da cena artística que que lhe está subjacente. Posteriormente, houve ainda uma terceira avaliação, desta feita pela leiloeira Christie’s.

Atendendo à composição do acervo, o valor de mercado atual da coleção é estimado em 30 milhões de euros, do ponto de vista do vendedor. O valor para a entidade compradora dependerá de a aquisição ser feita diretamente com o vendedor ou por intermédio de uma leiloeira; neste caso, há que considerar uma comissão até 30%. Dado o montante em causa, certamente a sua percentagem será menor e agregada ao valor das obras adquiridas. Para esta avaliação teve-se em consideração que, das 797 obras da coleção, apenas 70% são suscetíveis de serem vendidas em leilão internacional (Sotheby’s, Christie’s ou Phillips). Do remanescente, as 117 peças de instalação e vídeo (cerca de 15% do total) têm, como mercado mais adequado, o circuito das galerias onde foram adquiridas, com valor estimado abaixo do respetivo preço de aquisição, de modo a refletir a comissão das galerias revendedoras, entre 25% a 30%. Os restantes 15%, essencialmente de jovens artistas estrangeiros e de artistas portugueses, embora vendáveis em leilões locais, não são suscetíveis de ter estimativa no âmbito do mercado internacional.

Deve ainda considerar-se que este valor de 30 milhões de euros é em parte suportado pela valorização de obras de alguns de artistas, entre eles Richard Prince, Cindy Sherman, Thomas Schütte, Louise Bourgeois, John Baldessari, Gabriel Orozco, David Hammons, Glenn Ligon.

As características deste acervo, nomeadamente a existência de um conjunto de obras suscetíveis de atribuição de qualidade museológica, permite considerar que a sua anunciada aquisição e integração num futuro museu a criar pelo Ministério da Cultura será um enriquecimento para o património museológico do nosso país. Mas, isso só acontecerá se a dimensão histórica e referencial da chamada Coleção Berardo for mantida como núcleo constitutivo fundamental desse museu a criar, permitindo enquadrar e dar consistência à natureza conjuntural do acervo da Fundação Ellipse.
Como será designado e como se fará este novo museu, é assunto para outro artigo.

Artigo alterado dia 21 de Junho: corrige nome do artista Gabriel Orozco

Sugerir correcção
Comentar