Conferência dos oceanos? Não. O oceano é um só
Faço investigação na temática da governação sustentável do oceano. Por imperativo profissional, as leituras essenciais são em inglês, a língua em que estão escritos todos os documentos de referência, a começar pelos das Nações Unidas. Assim, quando me comecei a preparar para a conferência da próxima semana, privilegiei as fontes em inglês, incluindo o site oficial da conferência intitulada UN Ocean Conference (Conferência do Oceano das Nações Unidas). Eis senão quando, ao ler referências em português, me apercebo, de repente e com alguma incredulidade, de que o título oficial na nossa língua é Conferência dos Oceanos! Ando para trás e para a frente entre os dois títulos e não há dúvida: em inglês o oceano é singular, em português é plural.
Parece um detalhe, uma gota de água sem importância no enorme oceano das preocupações sérias e legítimas sobre a saúde e futuro deste ecossistema maior do nosso planeta. Mas, só de pensar nisso, essa proverbial gota ganha vida na minha imaginação e vejo-a, salgada e fria, a afundar no Atlântico Norte, ao largo da Gronelândia, e a deslocar-se em profundidade para sul rumo ao oceano austral. Aí chegada, a gota inflecte para o Índico onde poderá vir à superfície apanhando uma corrente quente de volta para o Atlântico. Mas também pode continuar até aos confins do Pacífico, só aí iniciando a sua viagem de regresso para o ponto de partida na Gronelândia.
Na minha imaginação, a gota cumpre num piscar de olhos, a circum-navegação que a ciência mais actual estima, para uma gota de água real no oceano, demorar qualquer coisa entre poucas centenas a alguns milhares de anos. A duração da viagem depende da rota seguida no chamado “tapete rolante do oceano” (ocean conveyer belt), a corrente oceânica global que liga todas as bacias, que nós, em tempos idos, individualizámos e a que chamámos Atlântico, Índico, Pacífico, Árctico e Antárctico. E porque todas as bacias oceânicas estão interligadas, aquilo que acontece numa, mais cedo ou mais tarde, far-se-á sentir em todo o oceano.
Se para muitos de nós a ideia de um oceano único é ainda novidade, para as baleias, por exemplo, nunca foi tema, já que o oceano é a sua casa e elas sabem que não há fronteiras ou divisórias entre as suas áreas de alimentação, nas águas a latitudes mais altas, frias e produtivas, e as de reprodução, nas águas mais cálidas do globo. Nem entre a superfície e as profundezas, que elas visitam regularmente. Talvez sintam as mudanças de temperatura das massas ou camadas de água enquanto se deslocam no oceano ou quando mergulham em profundidade, tal como nós quando mergulhamos de cabeça no mar quente e percebemos, demasiado tarde, que debaixo da fina camada superficial aquecida pelo sol está uma espessa camada fria, que nos arrepia.
O arrepio que a evocação do mergulho me causa traz-me de volta à realidade e à minha preocupação: a noção de que o oceano é só um é o primeiro dos sete princípios essenciais da literacia do oceano, estabelecidos há quase 20 anos. Arrepia-me pensar que estamos, como país anfitrião da conferência, a passar ao mundo um conceito ultrapassado e compartimentado do oceano. Mas talvez não seja demasiado tarde. Como sou optimista e acredito que podemos sempre tirar o melhor proveito das situações, mesmo das que parecem irremediáveis, ocorre-me a possibilidade de rasurarmos, de forma bem visível e desenvergonhada, esses “s” a mais no título da Conferência, passando “os oceanos” a “o oceano”, em todas as oportunidades que tivermos – como se essa correcção fosse, em si mesma, uma iniciativa deliberada e arrojada de literacia do oceano.
E, pensa a optimista que existe em mim, quem sabe se não foi essa a ideia destes plurais? Nesse caso, parabéns – é uma ideia genial. Façamo-lo, então, e ajudemos a comunicar e disseminar esta noção essencial de que o oceano é um só.