Tomaz de Figueiredo tem passado a posteridade tal como passou a vida: subvalorizado e ignorado. Nasceu em Braga a 6 de Julho de 1902, embora tenha deixado o coração nos Arcos de Valdevez. 120 anos não bastaram para a pioneira obra dele atrair leitores atentos. Durante décadas após a morte, os herdeiros deixaram os livros desaparecer do mercado. Depois de 1974, conotações com o Estado Novo jogaram-no com outros irredimíveis na fossa séptica da história. Pior, a universidade ainda não se desipnotizou do enviesado ensaio de Eduardo Lourenço que postula a génese duma “Nova Literatura” em 1953, dando a entender que para trás há só escória. Ironicamente, a obra dita genesíaca, A Sibila, foi escolhida por Tomaz de entre 34 manuscritos originais num concurso. Contou a José Régio que o resto do júri se inclinava para um romance neo-realista, mas “bati o pé a que fosse premiada A Sibila, pois que, se o não batesse, então…” Foi tão-só um acto menor numa carreira que orçava já vinte anos dedicados a afeiçoar a ficção portuguesa ao espírito de Tomaz.
Individualista avesso aos grilhões de grupos, os dois movimentos literários dominantes desafiou-os desde cedo. Os neo-realistas, que altivamente descuravam a forma artística em prol da mensagem política, levaram reprimendas porque concebiam o ser humano como uma casca vazia: “Destinam-se os romances a revelar almas, a estudá-las e dissecá-las, até quando usem processos poéticos”, dizia. Tinha mais afinidades com as propostas artísticas da revista presença, fundada por Régio e Branquinho da Fonseca, com os quais travou amizade quando cursava Direito em Coimbra, onde discutiram a primazia da psicologia individual sobre a análise social. Mas julgava Régio incapaz de imbuir poesia à prosa. O poeta Edmundo Bettencourt disse que Tomaz foi o primeiro dissidente da presença; mas elogio à parte, não dissidiu quem decidiu nunca pertencer.
Em 1934, estreou-se com contos nos antípodas da voga anti-modernista que mantinha a ficção paralisada no naturalismo. O romance relatava convulsões sociais e propagandeava programas partidários, de fora, ignorando a inesgotável máquina de horrores da mente que intrigava pensadores recentes como Bergson e Freud.
A consciência espantava Tomaz por conferir significância ao sem-sentido. Para ele, não havia distinção entre mente e matéria, o inerte era poroso e penetrável. No conto “A Boneca”, uma criança estima uma boneca de farrapos como se fosse uma filha: “Tão pequena, já padecia de imaginações, e via nela uma criança.” Mas a boneca cai em brasas e Luisinha (“minha filha!”) lança-se para a salvar: “E nada mais houve no chão de terra endurecida, que um novelo vivo que fumegava.” Neste conto de comovente contenção, Luisinha paradoxalmente morre porque “emprestou uma alma” ao que não vivia. Tomaz achava fascinantes e perturbadoras as formas infinitamente variadas com que a faculdade imaginativa se apodera dos donos. Em “O Crime”, por desfastio alguns estudantes convencem um colega saudável de que apanhou uma doença nasal; tanto se aflige em descobrir que doença é, que no final está a morrer de cancro do nariz, como se pela vontade da imaginação o corpo tivesse desenvolvido uma doença para o apaziguar. Noutro conto, um faquir revela a um homem supersticioso a hora exacta da morte; no derradeiro minuto de vida, não resistindo à angústia da espera, pega num revólver: “E empunhando a pistola de que se prevenira para defrontar a morte, atravessou a cabeça com duas balas…”, concretizando a profecia em que acreditava. Outro escravo da imaginação quebra a amizade com um amigo porque é traído por ele num sonho: “Bem sei que foi um sonho. Mas quem lhe diz que não são os sonhos a única forma explicável pela telepatia de conhecermos as mais íntimas propensões dos outros?”
O conflito entre o indivíduo e a própria imaginação inquietava-o mais do que a condição da sociedade. Rodeado de realistas foçando nas questões sociais em dia e espremendo as últimas proteínas ao putrefacto Eça, Tomaz demarcou-se com pesadelos fantásticos, ambíguos, grotescos, entreabrindo um mundo anti-racionalista regido por augúrios, profecias, sonhos, superstições, suicidas, loucura.
Este reportório macabro expungiu-o da Toca do Lobo (1947), a estreia no romance. A cinta promocional dizia sucintamente: “Um livro diferente”. Ao contrário da maioria das cintas, não era hipérbole. Sempre se reinventando, em vez de sobrepor o fantástico ao dia-a-dia, banhou-o de halo poético. Usando o estilo para intensificar a vividez do quotidiano rotineiro, talvez o pudesse transfigurar ao ponto de reaparecer fresco e belo à vista dessensibilizada do leitor. Como explicou num artigo:
“Vejo um ‘romance’ em que seja aproveitada a experiência das passadas tentativas: imaginação e observação liadas: o raro, o inesperado, mas nem por isso ilógico, batido na bigorna da análise. Casos tão ímpares oferece frequentemente a vida, que até intuitiva e inconscientemente se usam chamar de romance. E há-de a poesia entretecê-lo, sagrá-lo de autêntico, por mais que o romance poético seja ainda verde para amadores de historietas.”
As aspas em “romance” indicam que não tencionava imitar os processos dos mandarins do bom gosto. Ainda não houvera nada como A Toca: Tomaz chamou-lhe “estático” porque nada acontece no presente; há só aleatórias divagações memoriosas de Diogo Coutinho, entocado na mansão paterna. Não é o tempo perdido de Proust, mas o “bem perdido”, entranhado nos objectos em redor e cuja presença desperta as memórias mais carinhosas, num frenético caleidoscópio de tempos abruptamente misturados.
Por essa razão, não há enredo. Em vez de contar uma história de A a Z, com resolução, A Toca simplesmente acaba. Nem presencistas nem neos, eliminaram a linearidade temporal que era o apanágio do romance oitocentista, mas Tomaz queria provar a viabilidade duma anti-narrativa cativante sem o encadeamento de peripécias e reviravoltas, sustendo o encanto do leitor através da carga emotiva das divagações:
“Só! Só, mas acompanhado de fantasmas, a surdirem-lhe a cada instante das frinchas da memória, amigos ou apenas pitorescos, anulando o tempo. Parara, o tempo! Parara o tempo!
Fantasmas, alguns, que também o magoavam, pela impossibilidade física de lhes falar com que o ouvissem, de lhes poder pedir perdão de certas injustiças, de certas leviandades de rapaz.”
Foi ele também o primeiro a ressentir-se do estorvo que a pontuação ortodoxa causa a uma visão artística singular. Porque Diogo quase não interage com outros no presente, os diálogos são o que Tomaz chamou “reminiscências pensadas no presente”, por isso estão entretecidos na prosa:
“E ainda, como no tempo do pai, às vezes dali da janela descobria alguma carreira de perdizes, todas molhadas, pescoço ao alto e rabos virados ao chão, como ponteiras de guarda-chuvas, a escorrer. (Estas cá dentro é poupá-las, ouviste!, para criarem e para as ouvirmos cantar! Tanto gosto de as ouvir!)”
Nos cem anos anteriores do romance português, ninguém quebrara as sacrossantas regras gramaticais. O resenhista do Diário de Notícias ficou estupefacto: “julgava proeza irrealizável arrancar o diálogo do romance, sem fazer perder a este o sangue, sem o deixar como morto. Enganava-me”.
A poesia da Toca é agridoce: por debaixo do êxtase perpassa uma crítica irónica a Diogo por ter abandonado o presente para se rodear de fantasmas. Até Diogo prevê que esta obsessão o fará parecer-se com um parente enclausurado com fama de maluco: “Era possível, sim, muito possível que mais tarde viessem a compará-lo ao pobre Sebastião das Pereiras, que se lembrassem de jurar que também ali na Toca do Lobo andavam almas do outro mundo.” Para Tomaz, a luta do indivíduo não é com a sociedade mas com a mente, ora paraíso ora prisão. Os poucos estudiosos têm insistido em apegar Diogo ao seu criador, como se fosse uma autobiografia disfarçada, apesar de Tomaz ter preferido o dinamismo de Lisboa à pacatez da província. Até hoje ninguém deu pelas curiosas semelhanças entre A Toca e Aparição, de Vergílio Ferreira.
Tomaz nunca encontrou uma fórmula de ficção satisfatória. Em 1950, Nó Cego pegou num tema dilecto do romance presencista, o amadurecimento intelectual duma criança, para um estudo duma alma cuja capacidade de sentir alegria é lenta e minuciosamente destruída pelo embate com o mundo: “Não que se trocasse por ninguém, apesar de tudo. Queria só ser quem era. Mas havia tantos que não tinham negrura na alma…” Contudo, Tomaz sugere que João Bravo, tal como Diogo, é a principal causa da sua infelicidade: “O pior é que tinha de resolver-se, que não havia outro remédio. E daí que a imaginação, o seu pior inimigo desde pequeno, talvez lhe pintasse tudo mais negro do que afinal seria…” Na auto-destruição de João em resposta a um mundo sufocante, lembra outro romance de Vergílio que sairia quatro anos depois, o mais optimista Manhã Submersa.
Embora leitor atento de Eça, apaixonado pelo seu estilo poético, a inclinação anti-realista de Tomaz fê-lo quebrar várias regras do romance bem-feito. Procissão dos Defuntos (1954) antecipou-se a Saramago e a Mário de Carvalho na recuperação do narrador intrometido que comenta a ficção em curso:
“O desfiar desta mui verídica e acontecida história vai a tomar tal correr, que ao narrador lhe dá agora para nela meter bico, atentando contra os cânones da objectividade e seguintes.
Não sabe que é! O estilo atrás do assunto, o cálamo empós do estilo, a nascer-lhe uma procaz sucessão de maneiras e dizeres obsoletos, e termos que o leitor quiçá deixou de o ser.”
Tal técnica, outrora usada por Garrett e Camilo, estava proibida desde o tempo de Eça e dos naturalistas, porque os mandarins do bom gosto ditavam que um romance deve ser o relato objectivo da realidade, sem comentários ou juízos de valor externos. Tomaz adorava proibições porque vivia das palavras dum pensador francês, Ernest Hello: “O processo do êxito está em seguir com os outros; o processo da glória, em ir ao contrário dos outros.”
Dom Tanas de Barbatanas (1962) prenuncia a voga do romance histórico dos anos 80, que em vez de recontar a versão oficial, questiona as fontes e oferece contra-narrativas de vozes silenciadas e marginais. Um dos muitos prazeres deste livro é apanhar as deliberadas contradições cronológicas dum panegirista que distorce a verdade para enaltecer um biltre.
A partir dos anos 60, a ficção começou-se a libertar-se dos diktats artísticos contra os quais Tomaz se revoltara 30 anos antes. Quando faleceu em 1970, tinha uma obra que anunciava os temas, técnicas, formas e liberdade da ficção actual. Em A Sibila terá pressentido um aliado e quiçá sinal de que não laborara em vão, de que a mudança estava enfim em curso. Nas décadas seguintes, o romance tornou-se mais introspectivo, não-linear, fragmentado, também mais poético, aberto às explorações de Agustina, Ruben A., Vergílio Ferreira, Lobo Antunes e Saramago. Se vivo, Tomaz ficaria feliz por ver que agora fazem todos o “livro diferente” dele.