Documento de arquivo?
Só uma enorme insensibilidade e ignorância históricas permitem a celebração da independência de um país amigo através da partilha da foto de uma figura associada a um período da história nacional que não pode, sob pretexto algum, ser celebrada.
No passado dia 12 de julho, por ocasião de mais um aniversário da independência de São Tomé e Príncipe, a página do Museu da Presidência da República portuguesa na Internet fez uma publicação assinalando a efeméride, mas em termos no mínimo equívocos que só podem gerar consternação em todos os cidadãos democratas e que genuinamente compreendem o significado que esta data tem para o arquipélago africano e para Portugal.
Sem qualquer esforço de contextualização histórica, nessa publicação inclui-se uma foto da visita de Estado do Presidente Óscar Carmona ao arquipélago, ocorrida entre junho e setembro de 1939. O/a(s) autor/a(s) desta publicação parecem ignorar que este Presidente cumpriu o seu mandato durante, e ao serviço de, um regime ditatorial que exerceu violência extrema sobre as populações do arquipélago, e que incluiu o trabalho forçado, a perseguição policial, violações sistemáticas, tortura, assassinatos e massacres. As violações dos direitos humanos neste território incluíram também o exílio forçado de muitos portugueses, incluindo o ex-Presidente Mário Soares. Só uma enorme insensibilidade e ignorância históricas permitem a celebração da independência de um país amigo através da partilha da foto de uma figura associada a esse período da história nacional que, não devendo ser ignorada, não pode sob pretexto algum ser celebrada.
Desde a instauração de um regime democrático na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974 Portugal teve cinco presidentes, que exerceram o seu mandato em liberdade e de acordo com os pretextos constitucionais; vários desses presidentes fizeram visitas oficiais a São Tomé e Príncipe. Assim, Ramalho Eanes visitou o arquipélago em 1984, Mário Soares em 1986, Jorge Sampaio em 2000 e Marcelo Rebelo de Sousa em 2018. Face a esta panóplia de possibilidades, só a ignorância histórica ou um claro propósito ideológico de branqueamento e promoção dos valores do anterior regime explicam que os responsáveis por esta publicação acintosa tenham escolhido partilhar uma foto de um cúmplice de Oliveira Salazar e do Estado Novo. Isto é, do Presidente do regime político que trabalhou para oprimir implacavelmente os são-tomenses, angolanos e cabo-verdianos (entre outros) em São Tomé, e contra o qual a independência do território se efetuou.
Imagine-se se, para assinalar uma data importante do calendário judaico, o Museu do Holocausto em Berlim publicasse nas suas redes sociais e sem qualquer contextualização uma foto de Heinrich Himmler visitando o Gueto de Varsóvia. O exemplo só aparentemente é extremo, porque é essa a essência do gesto dos responsáveis por esta publicação na página do Museu da Presidência da República, assinalar a independência celebrando a opressão. Por outro lado, este gesto não é inédito por parte da gestão das redes sociais do Museu: a 4 de janeiro deste ano, dia em que em Angola se assinala a memória da repressão colonial, no Facebook do Museu foi publicada uma carta de Américo Tomás redigida em 1961 e dirigida a... colonos portugueses em Angola. O ponto de vista segundo o qual “violência colonial” corresponde à luta armada dos povos africanos pela sua autodeterminação (e a autodeterminação dos povos é um princípio que Portugal se obriga a reconhecer desde 1974-76) foi veementemente rejeitado e derrotado por portugueses e africanos, e uma instituição do Estado português não pode trabalhar para veiculá-lo como se a História não tivesse tido lugar.
Significa isto que o Museu da Presidência da República não pode efetuar publicações sobre os presidentes do Estado Novo? Decerto que não, e isso até feriria os propósitos na fundação deste Museu, designadamente aqueles que inspiraram o Presidente Jorge Sampaio quando decidiu estender a sua coleção a todos os períodos da história da instituição presidencial. No entanto, o trabalho historiográfico com esse período requer cuidados de contextualização, sobretudo quando estas publicações se destinam ao público em geral e não a um grupo especializado de estudiosos. É necessário ter muito claro (e ser capaz de clarificar) as razões pelas quais se partilham conteúdos alusivos a esse período da história nacional, sendo que a mera disponibilidade de material de arquivo não é razão suficiente nem aceitável.
Ora, tendo eu confrontado na página do Museu na rede Facebook os responsáveis por esta publicação, alertando-os sobre o despropósito, os mesmos reincidiram no erro, o que sugere duas coisas: ou os mesmos são guiados por um propósito ideológico que compromete de forma gravosa a missão do Museu, ou então são movidos por uma descomunal e inapelável incompetência que não lhes permite destrinçar conceitos básicos e por isso os desqualifica para o trabalho para o qual foram indigitados. Ademais, esta interação teve lugar numa tarde de domingo, isto é, fora do horário do expediente, o que por sua vez sugere uma pergunta: as redes sociais de um museu são um órgão institucional ou uma página de opinião da pessoa que as gere? O funcionamento das mesmas durante o fim de semana sugere a última hipótese. O museu lista 15 pessoas responsáveis pelos conteúdos dos museus; mesmo imaginando que nem todas essas pessoas têm a seu cargo a gestão das redes sociais, é incompreensível que não exista na instituição competência científica e pedagógica para evitar estes embaraçosos percalços.
Também por esta razão, a intervenção da sua diretora torna-se indispensável e urgente, no sentido de reparar uma trajetória inquietante que, a manter-se nestes moldes, nos coloca perante duas outras hipóteses igualmente gravosas: significa o facto de o Museu se encontrar sob tutela da Presidência da República que a mesma (ou o Presidente em exercício) pode exercer sobre ele tutelagem política? Pode um funcionário a título individual servir-se das redes sociais de uma instituição sob tutela de um órgão de soberania para veicular opinião? Parece-me óbvio que é do interesse da Presidência da República promover uma célere e cabal clarificação desta questão, sendo essa clarificação também do máximo interesse público. Entretanto, a imediata retirada da publicação que desonra portugueses e insulta são-tomenses é a primeira decisão que se espera da diretora do Museu.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico