Verão, condelipas e o Dia Nacional da Conservação da Natureza
Desde que me conheço, e faço 50 anos este ano, que passo as férias de Verão em Lagos, a terra do meu pai. Em miúda, ia com a minha família para a Meia-Praia, mesmo ali ao pé do forte, onde se juntavam os nossos amigos e conhecidos. Eu adorava tudo naquelas manhãs de praia, mas o meu passatempo preferido só chegava em Setembro, quando, nas marés vivas, a maré descia muito e podíamos, finalmente, “ir à condelipa” (1). Até hoje não perdi o hábito, viciante, de revolver, com os pés, a areia na zona da rebentação, para fazer aparecer aquelas lindas conchas brilhantes e com a sua fantástica gama cromática, de amarelos ocre a tons violáceos.
Em miúdas, além da técnica para as desenterrar, a minha irmã e eu aprendemos com os mais velhos as duas regras de ouro da apanha da condelipa: nunca, mas nunca, se guardavam as pequeninas (porque ainda não tinham tido bebés e, juntava o meu pai, se as devolvêssemos ao mar, ele dava-nos uma grande em troca – método, ainda hoje, absolutamente infalível!) e só se podiam comer condelipas em meses com R. Não me lembro se alguma vez me explicaram o porquê desta regra e não sei sequer se o sabiam. Só a percebi anos mais tarde, por via da biologia e da ecologia: não apenas os meses de Maio a Agosto coincidem, grosso modo, com a época de reprodução destes animais (principalmente da espécie Donax trunculus), como são também o período com maior probabilidade de haver blooms de microalgas planctónicas que as condelipas filtram para se alimentar e que podem ter toxinas que não são destruídas na cozedura.
Assim, este defeso, resultante do conhecimento ecológico tradicional, tanto protegia a condelipa, dando-lhe tempo para se reproduzir e crescer, como nos punha a salvo de intoxicações alimentares potencialmente muito graves.
Actualmente, as condelipas/conquilhas/cadelinhas continuam a ser um passatempo predilecto de muitos veraneantes, seguramente demasiados por essas praias fora, ávidos de as abrir na frigideira com azeite e alho, e que apanham todas as que encontram, sem qualquer consideração pelo seu tamanh(inh)o (para mais, a zona da rebentação é, precisamente, o ambiente preferido dos juvenis) nem pelo calendário. Não será coincidência o facto de, nos últimos anos, muitas populações ibéricas desta espécie apresentarem decréscimos populacionais tão significativos que estão em risco de extinção...
Ocorre-me tudo isto a propósito do Dia Nacional da Conservação da Natureza, que hoje se celebra. Foi instituído em 1998 pelos 50 anos da Liga para a Protecção da Natureza (LPN), a mais antiga associação de defesa do ambiente na Península Ibérica, com o objectivo de “criar um momento anual de especial reflexão sobre os problemas da conservação da natureza em Portugal e no mundo”, tendo em conta que a sociedade “deve ser sensibilizada para as questões ambientais, nomeadamente no que diz respeito à problemática da conservação da natureza e à promoção do uso sustentável dos recursos biológicos” (2).
Tenho o grato prazer e a honra de ter pertencido ao grupo de pessoas que, numa reunião da direcção da LPN, teve a ideia e trabalhou para a instituição deste dia, mas não deixo de ter pena de precisarmos actualmente de um dia para reflectir sobre estas questões. No seio da sociedade em que estava inserida em miúda, e era composta por gente bastante citadina, essa sensibilização ambiental e formação para o uso sustentável dos recursos, fazia, efectivamente, parte integrante da nossa vivência na praia, onde a aprendíamos de pés enfiados na areia...
Neste Dia Nacional da Conservação da Natureza, deixo aqui o meu singelo contributo para a conservação da belíssima e deliciosa (para mim, até no nome) condelipa. Se, como eu, não resistir a revirar a areia em busca de condelipas/conquilhas/cadelinhas, contente-se, até ao final de Agosto, com a contemplação da sua diversidade de tamanhos, cores e padrões. A partir de Setembro, se fizer mesmo questão de levar algumas para petiscar em casa, guarde apenas as que tiverem mais de 2,5 centímetros, e só depois de confirmar que é seguro, na página do Instituto Português do Mar e da Atmosfera. Pode também ir tentando fazer alguma sensibilização junto de outros banhistas, como eu tenho arriscado ao longo dos anos, nem sempre com o melhor acolhimento. Pode ser que tenha mais sucesso do que eu. Desejo-lhe muito boa sorte.
Notas:
1) Que eu saiba, só em Lagos e arredores se sabe o que são condelipas, conhecidas no resto do país por conquilhas ou cadelinhas. A origem da palavra estará ligada ao próprio forte da Meia-Praia e ao Conde de Lippe, marechal-general do Exército Português na década de 60 do século XVIII, que, ao que parece, era grande apreciador da iguaria!
2) Resolução do Conselho de Ministros n.º 73/98, de 29 de Junho.