Agustina Bessa-Luís: mais revelações da Sibila

Que o estudo rigoroso reinsira a obra de Agustina no seu tempo em vez de persistirmos numa semideusa além do tempo humano.

Em 1953, obstavam-na alta iliteracia, livros caríssimos para a carestia diária, falta de distribuição e de livrarias e uma implosão editorial que deixara desamparados novos autores e até consagrados como José Régio e Alves Redol. Mundo Fechado e Os Super-Homens não demoveram a rotina, andava agora a custear os fascículos dos Contos Impopulares. Então o júbilo: “Ainda que o verdadeiro artista da própria desesperança e desamparo extraia estímulo, iniciativas como esta podem consentir que ele mais cedo se revele ao público, assim como podem poupar-lhe alguns anos de tentativas publicitárias e de obscuridade”, chirriou Agustina ao Diário Popular em Janeiro de 1954, após o Prémio Delfim Guimarães. Por a espantosa rareza dum prémio ainda enfeitiçar, o segundo prémio em Dezembro de 1955, feito ímpar, acelerou a 2.ª edição da Sibila, outra bênção num país cujos autores se achavam sortudos se os publicassem sequer.

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Agustina Bessa-Luís PAULO RICCA

Como referi num artigo anterior, por detrás desta felícia está uma figura hoje esfumada, o romancista Tomaz de Figueiredo. Após um romance de estreia na Ática, entrara na Guimarães, decerto a convite de Francisco da Cunha Leão, amigo e colega de colégio, marido de Maria Leonor, dirigente da editora. Juntamente com Branquinho da Fonseca, Vitorino Nemésio e o professor brasileiro Álvaro Lins, Tomaz era uma escolha óbvia para integrar o júri.

A pilha de originais “deitava de alto uns três quartos de metro”, 34 manuscritos dactilografados que desbravou atrás do Eldorado. Contou a Régio que concorreram “medíocres e até desastrados.” Não faltaram “os inevitáveis romances esquemáticos, de ambição social, tentados com o cabedal do primeiro grau da Instrução Primária, cujo andar e fecho eram patentes, lidas meia dúzia de páginas.” A Sibila foi por aí o décimo manuscrito que leu e “de pronto se me afigurou difícil, sem milagre, que melhor caísse na rede. Louvo-me de comprar e de ler quanto em Portugal me conste ou verifique merecer leitura e, assim, fiquei intrigado. Quem seria o homem que teria escrito aquilo?! Nenhum dos escritores conhecidos me parecia capaz, apostava-o. Porque não podia ser o primeiro livro dum autor, creditei-lhe outros na gaveta.”

Aparentemente, a joeira causou celeuma no júri. A Régio deu a entender que um romance neo-realista não ganhou por um triz porque Tomaz fez frente aos colegas. Quando Óscar Lopes pediu uma entrevista à laureada e aos jurados, foi o único que se dignou a falar em público. “Os dois outros membros olimpicamente desdenharam a solicitação do crítico para dizerem também da sua justiça.” (Lopes referia-se a Branquinho e Nemésio; Lins já voltara ao Brasil.)

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Capas de A Sibila (Guimarães Editores)

Tomaz enterneceu-se com o êxito de A Sibila. Enviou-lhe o Diário de Notícias, por ser “pouco lido no Porto”, com o elogio de António Quadros, acrescentando-lhe que concorrera ao prémio também: “Honra, assim, é de prestar à sua honradez.” E um recorte da revista Tetracórnio com menções favoráveis de José-Augusto França e Jorge de Sena. Em Março de 1955, combinavam encontros em casa dela e tratava já o marido Alberto como amigo.

Isto prefigura um padrão comportamental. Em 1961, Tomaz encarrilou o júri para Marta de Lima, cujo Álbum ganhou o Prémio Revelação da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1967, ajudou um prémio de manuscritos originais a calhar em A China fica ao Lado, de Maria Ondina Braga. Além disso, tê-la-á recomendado à Sociedade de Expansão Cultural, editora dum amigo de Tomaz, o escritor Domingos Monteiro: a SEC publicou-lhe Estátua de Sal, prefaciado por Tomaz a pedido de Ondina. Gostava de ajudar novatos promissores porque não houve ajudas nem prémios quando começou.

Em 1939, Tomaz increpou os editores portugueses por nenhum ter comparticipado um prémio internacional do romance aberto a inéditos, cujo vencedor seria recompensado com tradução e publicação em línguas várias. “Destina-se aos desconhecidos, aos que não são gente.” Sonhava com um prémio que o libertasse do emprego. “E eu tenho uma crença muito grande nos desprezados quartos de almaço, catalépticos nas gavetas!” No limbo tinha Nó Cego, que só saiu em 1950. “Eu acredito, sobretudo, naqueles que não são gente!” Em privado, julgou-se desdenhado; mas em público, em vez de se lamuriar, preferiu afeiçoar o mundo aos seus desígnios, apoiando os não-gente a quem reconhecesse talento.

Que dotes procurava? Depois da morte de Eça em 1900, o romance praticamente estagnou. Em 1952, Ferreira de Castro deixou um testemunho valioso da onda anti-modernista ao tempo de Emigrantes (1928), quando um jovem sonhou em inovar o romance: “Por toda a parte se afirmava que o realismo fora ultrapassado e eu próprio me convenci disso. Comecei então a sofrer a ‘ânsia da originalidade’, que, como a ansiedade cósmica, de que fala Nietzsche, é tão própria da juventude.” A vinda para Lisboa, onde penujava um periclitante vanguardismo, “agravou ainda mais esse estado de espírito. Queria à viva força escrever algo que fosse estrondosamente novo. Pobre, ingénua ambição, tudo quanto fazia me deixava insatisfeito.” Face ao Chiado hostil ao modernismo, e ansioso por viver da escrita, cortejou o popular.

Mal-grado a ainda coercível influência de Eça, Régio e João Gaspar Simões tinham encetado através da revista presença a contestação do romance de análise sociológica em prol do psicologismo. Não foi elogiosamente que Vergílio Ferreira catalogou Agustina de presencista serôdia, certeiramente aliás, porque a presença não deslarga a má fama que Eduardo Lourenço lhe grudou duma “contra-revolução” do modernismo. Gaspar Simões de facto preferia o típico produto do Oitocentos ao Húmus, mas o suposto atraso dele continua planetariamente em voga: “presencista” é qualquer romance que sonde meticulosamente o bulício mental dum indivíduo durante uma crise íntima, sem abalar por aí além ideias herdadas duma narrativa escorreita: A Sibila sem tirar nem pôr.

Embora Tomaz perfilhasse certos processos presencistas, permitia à forma romanesca mais liberdades do que os contemporâneos. Quando avaliou A Sibila, já deixara o enredo, usara o fantástico, pastichara estilos, zombara do narrador objectivo do realismo, fragmentara o tempo, moldara parágrafos sucessivos até se assemelharem a versos num poema, inventara uma pontuação pessoal e fizera romances sem diálogo. Misturava técnicas (pós-)modernistas e tradicionais, mas não era um missionário do modernismo; o Padre António Vieira inspirou-lhe o código “de que não há antigo nem moderno, mas apenas o verdadeiro, dado que o velho de hoje foi novo no seu tempo, como o que é hoje novo amanhã será velho.” Importava-lhe, primeiro, a pujança psíquica das personagens. Disse a Lopes que “a volta ao eterno do Homem, à procura e explicação da Alma, é que fazem deste livro um romance que vale a pena ser escrito. Penso que só o que diz respeito à Alma vale a pena escrever.” Por isso comparava-a a Dostoiévski. (Onde encalharam os parâmetros presencistas.) Segundo, ralhou a presencistas e realistas por descurarem o estilo; selecto admirador de Aquilino, Manuel Teixeira Gomes e o Nemésio de Mau Tempo no Canal, na Sibila encontrou um raro dom verbal.

Por opugnar o realismo que reinava no romance desde o século XVIII, de que o neo-realismo era a mais recente iteração, Tomaz terá ficado feliz com o sinal que a Sibila lhe deu: que a luta contra os bonzos do gosto ao longo de 20 anos não fora em vão, que os pares se estavam libertando de Eça e dos naturalistas e tornando-se mais introspectivos – menos sociologia, mais almas. O prémio da Sibila acresceria à própria validação.

A Sibila, méritos à parte, não trouxe nada de novo ao romance português. Na lande da lenda, porém, aterrou como um óvni cheio de novas miríficas. A biógrafa Isabel Rio Novo alucinou um romance que não possui “verdadeiramente uma história com princípio e fim, tão pouco uma cronologia sequencial, antes uma temporalidade da memória, iniciando-se e terminando no mesmo local e sempre com os mesmos intérpretes.” Mas custa-me conceber relato mais a eito do que o nascimento, amadurecimento, doença e morte de Quina. Começar após a morte do protagonista e recontar do princípio até ao presente era comum no Oitocentos, um media res já usado em Dom Tarouco, Páscoa Feliz e Cerromaior. Ruben A. já auto-publicara Caranguejo, que narra defrenteparatrasmente: o primeiro capítulo incide numa mulher infeliz com o casamento; depois assistimos à festa de casamento; depois ao encontro entre ela e o marido; o “último” capítulo reconta o Big Bang e o nascimento do futuro casal. É uma performance incrível. Antes dele, A Toca do Lobo pulverizou a conexão temporal entre capítulos. Silvina Rodrigues Lopes afirmou certa vez que os “finais inconclusivos” dos romances de Agustina “não são porém puramente inconclusivos, eles são uma espécie de conclusão da impossibilidade de concluir”. Abstrusões abscedentes à parte, que mais classicamente concludente do que findar quando fina a protagonista que justificou as 250 páginas anteriores? Por contraste, A Toca acaba abruptamente, dispensando tão trágica e decisiva conclusão. Além disso, no capítulo final Diogo Coutinho imagina um futuro em que lidera uma guerrilha patriótica contra uma invasão Nazi; isto é irónico porque o livro começa com ele evocando o heróico tio-bisavô que combatera os franceses. Diogo, exilado do presente, atola-se tanto no passado quanto confabula futuros irrealizáveis (quando Tomaz começou a obra, por volta de 1945, sabia que tal perigo era nulo). A Toca não só é “estático”, como dizia, mas circular, espiritualmente acabando onde começou: numa angústia de tempo parado, de energia vital reduzida a imitações canhestras. Poderíamos continuar com o cotejo entre A Sibila e predecessores.

Às portas do Centenário do nascimento de Agustina, adivinho dois tópicos recorrentes: um frisará o feitio totalmente singular da obra, preguiçosamente papagueando as teses de Eduardo Lourenço que apagam tudo quanto para trás a anuncia, seja Tomaz, a presença ou Raul Brandão. Rio Novo nem menciona as circunstâncias do prémio, retirando arbítrio aos jurados. Não haverá vontade para a situar nas batalhas formalistas de então e dos percursos individuais dos que acrisolaram o gosto do público. Farão da Sibila um choque por que ninguém esperava, embora as resenhas reunidas por M. Glória Padrão e M. Helena Padrão perfaçam um consenso que prova que afinal todos estavam à espera dum livro assim para o louvar e podiam bem com a “originalidade” dele. Paradoxalmente, a única nota dissonante (que estrategicamente abafaram) foi tangida por Gaspar Simões.

De ano em ano, os fãs de Agustina competiram num crescendo de achados delirantes que lhe atestem a grandeza ímpar; o ainda insuperado Álvaro Manuel Machado até proclamou que A Sibila inaugurou uma nova fase do romance mundial. O primus locus destas hipérboles é um ensaio de Lourenço que concede a Agustina um feito assombroso: “Pela primeira vez tínhamos diante de nós, tanto quanto então o esperávamos e merecíamos, qualquer coisa bem próxima de um mundo literário autónomo, quer dizer, não um mundo que reenvia classicamente à vida e ou à imaginação, mas que é, em sua imediata realidade literária, emblema de vida e de imaginação, uma da outra indistintas.” Uau: uma literatura com oitocentos anos teve de esperar até 1953 por um mundo literário autónomo. Nem Camões Eça Pessoa, nem outra figurinha menor capaz do que noutras literaturas era da praxe há séculos. Numa universidade briosa, um estudioso seria corrido à risada se afirmasse que Nadine Gordimer inaugurou o mundo literário autónomo do romance sul-africano com The Lying Days; ou que o francês o desconheceu até Entre Dois Tiros.

Os centenaristas alanzoarão também que Agustina sofreu um ordálio na chamada Ditadura Neo-Realista, quando pedafágicos comunas barricados em editoras e jornais e júris de prémios barravam quem não bebesse em Marx. Aterrorizados todos, à excepção da super-humana sibila, amocharam, desbarataram a consciência. Fosse tal verdade, um júri diferente teria premiado o Grades Vivas de Celeste Andrade, candidata mais consentânea com o neo-realismo. A rareza de um romance somar dois prémios só foi igualada por um neo-realista em 1964: o bi-bafejado Hóspede de Job. Antes dos Cravos, Agustina detinha o recorde de prémios com 4: Tomaz tinha 3; Régio e Vergílio, 2; Rodrigues Miguéis, 1; Sena chuchava no dedo bilioso. Tais contradições não serão convidadas à comemoração.

Além de este mito parvo falsear o passado, rebaixa Tomaz e outros cuja bússola da consciência norteava bem. Apesar de os neos serem lapidados pela sujeição da arte à política, o mito é útil a uma Direita que só pensa na arte, quando sequer pensa nela, pelo mesmo prisma. Agustina é o único figurino literário reclamável pela Direita, visto que Montenegro e A Última Madrugada do Islão, de André Ventura, não irradiam igual imponência. Por isso Henrique Raposo e João Miguel Tavares volta e meia desempoeiram a fabular Ditadura para fazer uma analogia com a actual tirania do pensamento único de esquerda que grassa nas instituições e os ostraciza, inobstante a visibilidade mediática disfrutada em jornais, TV, rádio e podcasts – tal como a silenciada Agustina nunca o foi.

Que o estudo rigoroso reinsira a obra de Agustina no seu tempo em vez de persistirmos numa semideusa além do tempo humano; que lhe isole os originais contributos para a arte do romance sem lhe atribuir ainda por cima o que por direito pertence a precursores que travaram lutas contra o gosto vigente, graças a quem não as teve de travar. O apelo chega em má hora; Centenários alimentam-se de ideias feitas em vez de idas a ficheiros. Há indícios de que Rui Ramos vai espremer ao máximo a suposta vitimização de Agustina na biografia em preparação. Um Centenário para deixar tudo na mesma?

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