Como organizar o nosso território tendo em conta a geodiversidade?

Um conhecimento geológico detalhado da superfície e do subsolo é essencial para ordenar e planear o território. Em Portugal não há mapas geológicos actualizados em escalas adequadas para o efeito.

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São Paulo (Brasil) é uma das megacidades do planeta São Paulo (Brasil) é uma das megacidades do planeta/Foto: AMANDA PEROBELLI/Reuters

Em 1950, 30% da população mundial vivia em cidades, valor que actualmente atinge os 55% e prevendo-se que seja de 68% em 2050. As pessoas tendem a concentrar-se em cidades cada vez maiores e localizadas, em geral, perto de zonas litorais. Existem actualmente 37 megacidades (as Nações Unidas consideram megacidades as que albergam mais de dez milhões de habitantes), a maior parte localizadas na Ásia, prevendo-se que, até final desta década, o número total chegue a 41.

O aumento do número de megacidades tem sido muito rápido: basta considerarmos que existiam apenas nove megacidades em 1985, o que corresponde a um aumento de quatro vezes em menos de 40 anos.

Em Portugal não existem megacidades, mas a distribuição da população no território nacional não é homogénea. Os resultados provisórios dos Censos 2021, publicados pelo Instituto Nacional de Estatística, revelam que a população na zona Norte e na Área Metropolitana de Lisboa corresponde a 62% do total da população em Portugal.

Os dados revelam ainda que, à excepção do Algarve (3,7%) e Área Metropolitana de Lisboa (1,7%), todas as outras regiões registam uma variação negativa da população em relação a 2011 (o Alentejo com menos 6,9% e a Região Autónoma da Madeira com menos 6,4% destacam-se pelas maiores perdas).

Sabemos igualmente que a população tende a concentrar-se no litoral. Acresce o facto de o turismo em Portugal ter um grande peso na economia, o que implica que, em determinados períodos do ano, o número de pessoas no país mais do que duplica, aumentando a pressão sobre os recursos naturais e as infra-estruturas. O Instituto Nacional de Estatística estima que, em 2019, o número de chegadas ao país de turistas não residentes tenha atingido os 24,6 milhões.

Considerando este cenário em que grande parte da população humana a nível nacional, mas também mundial, tende a concentrar-se em cidades cada vez maiores, é prioritária a importância que o planeamento e ordenamento do território apresentam em áreas urbanas. De que modo a geodiversidade é importante enquanto base técnica e científica para as tomadas de decisão relativamente a políticas territoriais? Vejamos alguns exemplos.

Abastecimento de água

A maior parte da água doce disponível para consumo humano encontra-se armazenada em poros e fracturas de rochas, até profundidades que podem alcançar algumas centenas de metros. Estas rochas, designadas por aquíferos, são os armazéns naturais da água subterrânea e que, em média, contêm até 30 vezes mais água do que aquela que se encontra em rios, lagos e outros cursos de água, ou seja, à superfície.

Tratando-se de grandes reservas de água doce, normalmente de boa qualidade e menos sujeita às variações anuais de precipitação, exige-se que haja uma boa gestão das águas subterrâneas, evitando o seu uso para fins não essenciais, particularmente quando existe um agravamento das condições de seca e desertificação, em especial no Sul do país. Assim, por exemplo, é surpreendente que os cerca de 100 campos de golfe existentes em Portugal sejam regados maioritariamente com água subterrânea, sendo que na zona de Lisboa este valor atinge 76% e no Algarve 50%.

Construção de infra-estruturas

A decisão da localização de infra-estruturas como pontes, aeroportos, barragens, estradas e vias ferroviárias deve ter em conta as características geológicas locais e os processos naturais associados. Algumas das chamadas de atenção feitas por geólogos acerca do projecto para o novo aeroporto no Montijo têm que ver com a probabilidade de ocorrência de fenómenos relacionados com a geodiversidade: inundação face a uma tendência de aumento do nível do mar ou em resultado de tsunami e perigosidade sísmica.

Mais de 50% do lixo produzido em Portugal é colocado num dos 43 aterros para deposição de resíduos não perigosos. A selecção de locais para a instalação de novos aterros sanitários tem de ter em conta, entre outras, as características topográficas, geológicas e hidrogeológicas dos terrenos, uma vez que estas vão condicionar as opções de construção dos aterros e de gestão do eventual risco de contaminação. Em países em que a inumação dos cadáveres é a prática habitual, como é o caso de Portugal, a localização dos cemitérios deve também ter em conta as características geológicas, devendo ser privilegiados solos espessos de natureza arenosa com permeabilidade adequada e nível freático baixo.

Cheias, inundações, movimentos de vertente e erosão costeira

Apesar de os processos fluviais serem bem conhecidos dos geólogos, paradoxalmente são inúmeros os exemplos de construção de edifícios e infra-estruturas em locais com muito elevada probabilidade de serem afectados por cheias, inundações e movimentos de vertente (desabamentos, deslizamento de blocos, etc.), com a consequente possibilidade de perda de vidas humanas e materiais.

A 1 de Novembro de 2015 registou-se uma vítima mortal e danos materiais estimados em 15-20 milhões de euros quando Albufeira foi atingida por uma inundação, em resultado de um planeamento urbanístico que não teve em atenção a dinâmica dos processos naturais. No mesmo ano, a Agência Portuguesa do Ambiente identificou 22 zonas críticas de alto risco de cheias no Continente, cinco nos Açores e 27 na Madeira, muitas das quais agravadas pela existência de edificações e infra-estruturas em locais onde nunca deveriam ter sido construídas, tendo em conta a geodiversidade.

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Inundação a 1 de Novembro de 2015 no centro de Albufeira Filipe Farinha/STILLS

Décadas de completa desorganização na gestão do território, muitas vezes sob a complacência da administração pública nacional e local, levaram igualmente a uma ocupação desregulada do litoral, ignorando o conhecimento científico existente no país sobre dinâmica costeira. Consequentemente, todos os anos são gastos dezenas de milhões de euros em intervenções paliativas no litoral português para tentar travar a erosão costeira, que, em resultado da mudança climática, tem tendência para se agravar.

Actividade vulcânica e sísmica

Em território português, é no arquipélago dos Açores que a actividade vulcânica pode condicionar o ordenamento territorial. É absolutamente vital ter um bom conhecimento geológico e vulcanológico do arquipélago, de modo a identificar quais as ilhas e os potenciais locais onde a actividade vulcânica pode vir a afectar seriamente pessoas e infra-estruturas.

Já a existência de actividade sísmica significativa estende-se ao território continental e, apesar da imprevisibilidade do momento da ocorrência de sismos, os geólogos podem monitorizar as falhas com potencial de gerar estes fenómenos cujos efeitos negativos podem ser particularmente gravosos nas zonas mais populosas do país.

O papel da administração pública

Estes são alguns exemplos elucidativos de como o conhecimento geológico detalhado da superfície e do subsolo é essencial para realizar um bom ordenamento e planeamento do território. Só com uma caracterização pormenorizada da geodiversidade poderemos decidir para onde fazer a expansão de uma cidade, onde se pode construir um hospital ou uma estrada, ou por onde deve passar uma via férrea. Só conhecendo o território se pode ordená-lo e geri-lo o melhor possível.

Infelizmente, Portugal apresenta aqui uma lacuna com efeitos gravíssimos: a ausência de mapas geológicos actualizados, em escalas adequadas para o efeito. Esta lamentável situação é uma das consequências do desinvestimento do Estado no conhecimento geológico do país, bem demonstrativo da ignorância que existe sobre o papel da geodiversidade no combate aos enormes desafios ambientais que temos pela frente.

O actual Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), herdeiro dos Serviços Geológicos criados em Portugal em meados do século XIX (uma das primeiras instituições do género na Europa e no mundo), ao longo dos seus 15 anos de actividade não tem demonstrado capacidade para ser o que se exige no século XXI de uma instituição pública dedicada à geologia, apresentando um quadro de pessoal técnico e científico exíguo devido à aposentação dos mais experientes e à escassa contratação de jovens, a que se somam insuficientes condições materiais, sendo hoje uma das mais débeis instituições do tipo quando comparada com as suas congéneres europeias, apesar do meritório esforço e dedicação dos profissionais que ainda permanecem no activo.

Atendendo ainda que os municípios têm diversas e importantes atribuições em termos de ordenamento e planeamento territorial, é igualmente gravoso que, entre os 308 municípios portugueses, os que estão dotados de geólogos nos seus quadros técnicos não ultrapasse o número de dedos de uma mão!

Portugal tem inúmeros problemas resultantes, directa e indirectamente, de um ordenamento territorial pouco estruturado e que raramente teve em conta a geodiversidade. Há construções e infra-estruturas em locais onde não deveriam existir, há um gasto exagerado de água doce potável em usos que não o justificam e não temos ainda um conhecimento pormenorizado do potencial do território em termo de recursos naturais, o que conduz, por vezes, a decisões casuísticas que inviabilizam as melhores soluções a médio-longo prazo.

Agradecimentos a Luís Lopes e Teresa Salomé Mota pela leitura e revisão crítica do texto

Geólogo da Universidade do Minho e membro da Associação Portuguesa de Geólogos