2122, na margem de um rio fantasma

Desafiámos o investigador João Ramalho-Santos, da Universidade de Coimbra, a imaginar a Terra daqui a um século. Eis o seu exercício de imaginação para um planeta mais quente no futuro.

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Rio Mondego, uma memória do início do século XXI CARLA CARVALHO TOMÁS

Seguindo o percurso que fazia habitualmente todos os domingos, Nuno desceu ao que restava do rio. A verdade é que apreciava o raquítico Mondego, que para ele sempre tinha sido aquela nesga pantanosa. Deitou-se confortavelmente na areia grossa da antiga praia do Rebolim e contemplou a névoa de fim de madrugada por entre as árvores que por ali cresciam em paz. Aquele era o seu tempo solitário, para pensar na vida.

Os avós falavam muito de um outro Mondego, mas as infindáveis histórias dos avós do Nuno soavam a lendas. Invernos chuvosos e Primaveras ou Outonos amenos, que se distinguiam das outras estações. Uma era mítica em que tudo parecia equilibrado, sem furacões, geadas intensas ou outros fenómenos meteorológicos radicais, tão repentinos e curtos quanto destruidores. A que se seguiam longos períodos de calor e modorra, que quase davam saudades da fúria de tempestades. Nuno tinha dificuldade em aceitar aquela nostalgia, até porque no tempo dos seus avós já havia problemas, e, tal como os seus filhos, fingiam nada ter que ver com eles. Os jantares de Natal raramente acabavam bem.

A geração de Nuno fazia o que se faz sempre: procurava soluções, adaptava-se. Se não se podia sair à rua sem preocupações, todas as feiras de acessórios de moda agora incluíam novos dispensadores automáticos mistos, de protetor solar e repelente de insetos. Os mais estilosos colocavam-se nos braços, pernas e à volta do pescoço, utilizando um algoritmo para borrifar regularmente a pele; no caso de Nuno a mistura estava impregnada com um odor retro, Sauvage by Dior. Tinha sido lançado por um unicórnio financiado na Web Summit de 2099, o namorado ofereça-lho nos anos.

A sua mãe avisara que os algoritmos de libertação automática podiam não ser fiáveis, que os compartimentos pareciam pequenos; que mais valia o velho método das latas e bisnagas. Coisa de velhos, pensava Nuno, quem diabo sairia à rua carregado de tralha, como um sem abrigo? Já não lhe cheirava muito a Sauvage, mas a pouca água do Mondego ficava longe, e a última informação de monitorização automática de espécies invasoras indicava que os mosquitos Anopheles, aqueles que transmitiam o protozoário Plasmodium falciparum e, portanto, a malária, estavam mais a norte, na Riazinha de Aveiro, e para o interior. Nuno lembrava-se da primeira vez que tinham sido detectados em Portugal, migrando de África devido às alterações no clima. Ao pânico generalizado e corrida aos antimaláricos e inseticidas seguira-se a calma possível, reajustara-se o novo normal. Por outro lado, de repente havia verbas infinitas para estudar a malária, haveria de aparecer uma solução. Afinal de contas os africanos tinham vivido com aquilo durante séculos.

A porcaria dos mosquitos que fosse para o interior, pensou Nuno. O Mondego era um charco parado apenas animado por enxurradas repentinas temporárias desde que a água começara a ser açambarcada a montante, para garantir a agricultura local. O pessoal da serra da Estrela tinha aprendido com os espanhóis, e fechado a torneira. Tal como a região do Barroso com a exploração cooperativa e sustentável de lítio. Finalmente planos de descentralização e desenvolvimento do interior que tinham funcionado, atraindo pessoas (e mosquitos). Em vez de ceder à chantagem e aos preços absurdos que o interior pedia (pela água, com o lítio não havia outro remédio), a região de Coimbra tinha aproveitado para instalar a maior superfície contínua de painéis solares num vale onde pouco crescia, e já não havia gente para reclamar da estética, só cabras e javalis. Quanto a água, tinham o mar, mais perto agora do que alguma vez tinha estado. Os processos de dessalinização tinham sido adquiridos a Porto Santo, e, com as algas e aquacultura, mais as plantações de figueiras-da-índia e as quintas de gafanhotos, os do interior que se fossem lixar, enfardassem mosquitos e Queijo da Serra.

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CARLA CARVALHO TOMÁS

Nuno sentiu uma onda de calor, daquelas boas, inspiradoras. No fundo tinham tido sorte. A radiação resultante das confusões do século passado dissipara-se mais ou menos, e a pandemia daquele vírus misterioso que dizimara especificamente os 5% de pessoas responsáveis por 90% dos problemas ambientais em meia dúzia de meses tinha sido um bálsamo. Nem os que se refugiaram em bunkers megalómanos escaparam, só os que tinham partido para Marte e nunca mais dado notícias, boa viagem. O pai explicara-lhe que a designação popular do vírus era a junção de nomes ou iniciais de uns idiotas quaisquer doutro tempo, mas Nuno esquecera-se. Seja como for, quanto mais próspero, maior a mortalidade, ninguém tinha percebido porquê. E agora, com todas as pessoas mais suscetíveis falecidas, era tarde. Os cientistas já não tinham interesse em estudar o vírus, não havia verba, era uma doença negligenciada; como a malária de outros séculos. O importante é que as emissões tinham caído a pique. Não chegara para reverter grande coisa no imediato, porque o clima tem outra escala temporal. Mas estavam no bom caminho e, desde que não deixassem emergir mais idiotas, talvez se safassem. Por entre os suores Nuno só tinha uma certeza.

Iria ficar tudo mais ou menos bem.

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O mosquito Anopheles fêmea não tinha maneira de saber o que aquela criatura estaria a pensar, tão pouco lhe interessava. Importante era que o seu alvo expunha uma maravilhosa pele, e o odor insuportável que aquelas coisas costumavam emitir já quase se desvanecera. Por outro lado, com movimentos de mãos tão erráticos e febris só acertaria em mosquitos com mesmo muito azar. Era hora de puxar da sua probóscide, picar a pele, sugar um pouco de sangue, comer, sobreviver, reproduzir-se. Que a criatura já tinha sido picada por outras suas semelhantes, pelo menos uma delas carregando Plasmodium falciparum, e que estava em pleno delírio de malária, não era preocupação da Anopheles. A humidade e as línguas pantanosas eram limitadas, teria de aproveitar o que aparecia. E talvez pensar em ir mais para o interior. Ou para norte. Ou para onde quer que o seu clima fosse a seguir.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico