Quase 600 membros das forças de segurança usam as redes sociais para violar a lei
Mais de três mil publicações de militares da GNR e agentes da PSP, nos últimos anos, mostram que as redes sociais são usadas para fazer o que a lei e os regulamentos internos proíbem.
“Procura-se sniper com experiência em ministros e presidentes, políticos corruptos e gestores danosos”, diz o texto sobre a imagem do cano de uma espingarda que um militar da GNR de Vendas Novas publicou no Facebook. “E respectivos cônjuges”, acrescenta num comentário. A mesma imagem é reproduzida por um agente da PSP do Cacém que, noutra publicação, coloca fotos de dezenas de políticos do PS, PSD e CDS, incluindo o actual e o anterior primeiros-ministros, a quem chama “criminosos”. “Enquanto não limparem um ou dois políticos, não fazem nada…”, sugere um militar da GNR de Setúbal no grupo fechado Colegas GNR.
Na PSP da Azambuja, há um outro apelo: “Começar a limpeza selectiva, conta comigo colega. 9 milímetros com fartura.” “Só uma de 9 milímetros”, escreve, noutro comentário, um colega de Rio Tinto. Um agente da PSP de Queluz queixa-se de que há “tanta gente para abater ou no mínimo para colocar o resto da vida na prisão”, referindo-se aos “ladrões de colarinho branco” e “seus comparsas na política”.
Todos os agentes e militares da PSP e da GNR que escreveram estas frases nas redes sociais estão no activo. Muitos deles usam o seu nome verdadeiro e os seus perfis pessoais para fazer ameaças e praticar uma longa lista de crimes públicos, bem como dezenas de infracções muito graves aos seus códigos de conduta e estatuto profissional. No Facebook, parecem sentir-se inimputáveis.
Ao longo de vários meses, uma equipa de investigadores digitais construiu uma base de dados com a identificação de 591 agentes e oficiais da PSP e da GNR a praticarem crimes nas redes sociais. O número é preocupante, mas não deixa de ser uma minoria entre os cerca de 40 mil membros das forças de segurança.
Uma minoria que, contudo, representa um problema sério para as autoridades que “devem intervir superiormente para detectar e punir”, considera Jorge Bacelar Gouveia, professor de Direito na Universidade Nova de Lisboa e presidente do Observatório sobre Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT). Bacelar Gouveia é claro: o que lhe mostramos “configura vários crimes do código penal”.
“A Polícia de Segurança Pública tem em vigor normativos internos sobre comportamentos racistas, xenófobos e radicais, também nas redes sociais”, começa por nos explicar a nota com que a PSP respondeu às nossas perguntas. Magina da Silva, director nacional, recusou dar-nos uma entrevista, tal como o fizeram o comandante geral da GNR, Rui Manuel Carlos Clero, e o responsável político de ambos, o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro.
“É muita gente…”
Quando revelamos à anterior ministra da Justiça, e magistrada do Ministério Público, Francisca van Dunen, a dimensão da amostra que esteve na base deste trabalho, a sua resposta não relativiza o problema: “É muita gente…” Van Dunen, ela própria alvo do ódio de alguns destes polícias, toca no problema central: “Nós não estamos aqui a falar de liberdade de expressão. Há pessoas que, quando pertencem a certas instituições, têm de ter um discurso institucional. E se o discurso institucional dessas pessoas é esse, então é o discurso errado. Não estão no sítio certo…”
A lei é clara. Quem é escolhido para trabalhar na PSP ou na GNR aceita regras. As duas primeiras (e as principais) são a “subordinação ao interesse público” e a “defesa da legalidade democrática, da segurança interna e dos direitos fundamentais dos cidadãos, nos termos da Constituição e da lei”.
A lei foi largamente desrespeitada, milhares de vezes, por este grupo de membros das forças da autoridade, revelam os juristas que ouvimos para este trabalho. A lista de possíveis crimes inclui discriminação e incitamento ao ódio e à violência, ameaça com prática de crime, incitamento à desobediência colectiva, coação contra órgãos institucionais, difamação, discriminação racial e religiosa, ultraje por motivo de crença religiosa, instigação e apologia pública de um crime, incitamento à alteração violenta do Estado de direito, ofensa à honra do Presidente da República, incitamento à desobediência colectiva e denegação de justiça.
“Sou racista”
Nos perfis do Facebook destes polícias, os exemplos repetem-se. Um agente da PSP oferece “uma mariscada” a quem identificar um cidadão que empunhou um cartaz contra a polícia numa manifestação. “Polícia puxa arma”, é o título de uma notícia partilhada num grupo, “devia era puxar o gatilho”, comenta uma militar da GNR. “Fogo nos cornos deles [moradores do bairro da Cova da Moura] e dos governantes”, sugere um PSP de Cinfães. “Chumbo no lombo”, sugere um cabo-mor da GNR do distrito da Guarda. “Uma tapona bem dada no focinho resolve sempre”, escreve noutra publicação um agente de Ponta Delgada. “Partir-lhe os dentinhos todos da frente”, acrescenta o mesmo polícia noutro post. Para um GNR de Coimbra, há uma “solução”: “Fazer recurso à nossa arma. Onde está a dúvida? Antes cigarros na prisão do que flores no cemitério da minha terra.”
Um agente da PSP do Porto quer “as lojas chinesas fora da Europa, inclusive Portugal”. Um agente da PSP do Porto partilha uma petição que defende “o fim do Bloco de Esquerda”, segundo ele, uma medida para acabar com “a parasitagem”. Um chefe de esquadra da PSP da margem sul de Lisboa classifica o BE como “corruptor de jovens”. Um agente principal da PSP de Lisboa publica no seu Facebook uma “aula de biologia” onde mostra vírus, bactérias e aquilo a que chama, ilustrando com fotos, “parasitas”. Ali estão o Presidente da República, o primeiro-ministro, Ferro Rodrigues, Catarina Martins, Jerónimo Sousa, Mamadou Ba, Joacine Katar Moreira, Mariana Mortágua e Marta Temido.
Nos subúrbios de Lisboa, há um agente que trata o primeiro-ministro por “chamuças”. Um colega seu, da Azambuja, junta ao racismo a difamação: “O monhé está por trás da podridão que é o partido xuxa.” Um agente da PSP de Setúbal partilha uma petição para “afastar o juiz Ivo Rosa de toda a magistratura” e classifica o primeiro-ministro de “estirpe indiana” do “vírus que mais ataca Portugal”.
“Sou racista”, orgulha-se um agente da PSP. “Sou racista para quem vive que nem um parasita na sociedade”, repete um militar da GNR do distrito da Guarda. Um agente da PSP de Setúbal refere-se aos ciganos como “raça indesejável”. Um cabo da GNR de Braga discrimina assim: “Os paneleiros não têm sentimentos. Como é que podem falar em educação?”
“Não queremos nas forças de segurança quem tenha ideias contrárias ao Estado de direito”
A PSP diz que a sua estratégia assenta em “valores e pilares éticos”, tais como a “isenção e rejeição de qualquer forma de extremismo e discriminação”. Para o garantir, aquela polícia abriu nos últimos dois anos 15 processos disciplinares. Seis deles resultaram em penas de “multa e de suspensão”. O escasso número de condenações leva a PSP a afirmar que, “de uma forma geral”, a sua equipa “manifesta comportamentos adequados aos valores e pilares éticos”.
Em entrevista ao PÚBLICO, há menos de um mês, o director nacional da PSP, Magina da Silva, considerou que os problemas que relatamos neste trabalho são “pontuais”. Afirma mesmo que “foram imediatamente tratados”. “No Facebook, nas redes sociais, é aí que se vê. As pessoas têm de perceber que são agentes de autoridade do Estado, têm de ser neutros, apartidários e, quando não forem, têm de ser responsabilizados por isso.”
Este trabalho começou, precisamente, porque a responsabilização tarda. Alguns agentes da PSP, revoltados com a impunidade de que gozam os seus colegas que usam as redes sociais para organizar grupos racistas e violentos, forneceram os caminhos para a investigação, dado que a entrada em grupos fechados só é autorizada a quem demonstrar que pertence à PSP ou à GNR. Foram contactados jornalistas para trabalhar os resultados de uma base de dados entretanto obtida dentro das próprias redes sociais utilizadas. Um dos trabalhos mais difíceis foi o de verificar a identidade dos perfis e fazer corresponder os nomes a uma identificação precisa dos agentes: por posto, esquadra e distrito.
Na amostra, 296 elementos são operacionais da PSP e 295 são militares da GNR. Mais de 40% fazem apelos à violência contra alegados criminosos, contra políticos e outras figuras públicas, contra minorias. Por essa via, lemos as 3090 publicações destes 591 operacionais das forças de segurança que estão na referida base de dados. Cerca de 72% usam discurso de ódio. Mais de 75% revelam simpatia pelo Chega, difundem propaganda eleitoral do partido ou participam em grupos de apoio a André Ventura. Pelo menos dois dos agentes que constam da base de dados são militantes do Chega, segundo uma investigação da revista Visão, o que pode ser uma violação da lei dos partidos.
Em aparente tensão com a estratégia das direcções da PSP e da GNR, Anabela Cabral Ferreira, inspectora-geral da Administração Interna, olha para estas conclusões com preocupação. “Definitivamente, não queremos nas forças de segurança quem tenha ideias contrárias ao Estado de direito.”
“As forças de segurança são autoridade do Estado, são expressão da soberania do Estado, por isso quem defenda ideias racistas, xenófobas, homofóbicas, não é bem-vindo nas forças de segurança”, conclui a juíza desembargadora, que tem poder disciplinar sobre as forças de segurança.
Neste trabalho, optámos por não divulgar a identidade dos agentes que praticam estes factos — porque cremos não ser essa a nossa função. Mas abrimos algumas excepções. O polícia que diz, no início desta reportagem, estar à procura de snipers “com experiência em ministros e presidentes” é Luís Filipe dos Prazeres Maria, dirigente da Organização Sindical da Polícia, a OSP. Foi nessa qualidade que se reuniu com André Ventura e tem participado em várias actividades institucionais, ao mesmo tempo que difama António Costa e Pedro Passos Coelho, e muitos outros, online.
Em 2019, na sequência de um processo disciplinar instaurado pelas suas chefias, com origem em conflitos entre o agente, o seu comandante e alguns colegas, Luís Maria foi afastado. “Aposentação compulsiva”, decidiu o Ministério da Administração Interna. Luís Maria recorreu, com a ajuda do advogado do sindicato, e conseguiu que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra anulasse aquela decisão. Segundo Pedro Carmo, da Organização Sindical dos Polícias, Luís Maria foi indemnizado e regressou à PSP. A razão para revelarmos o seu nome, contudo, não é apenas essa. As convicções e acções de Luís Maria já causaram danos irreversíveis na vida de uma vítima em concreto, apurou o tribunal. É a história dessas vítimas, e dos seus agressores fardados, que contaremos na próxima edição do P2, no domingo. com Cláudia Marques Santos e Ricardo Cabral Fernandes
Texto alterado no dia 3 de Março, às 12h28, acrescentando informação de contexto sobre o processo que conduziu à aposentação compulsiva de Luís Maria.