As crises da modernidade tardia: climática, emocional, política

Uma boa gestão do território, assente nos princípios da igualdade, justa distribuição dos recursos e prevenção de danos não pode ser conseguida sem coragem política.

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O conceito de modernidade tardia é apresentado pelo sociólogo britânico Anthony Giddens para definir os actuais tempos de complexidade que, baseados na mobilização da razão como elemento central da ciência, são simultaneamente permeados por inseguranças de múltiplas ordens e profundidades. Por isso, esta modernidade tem exigido aos indivíduos uma capacidade de reflexão sobre si mesmos, bem como o mundo que os rodeia, para desenvolverem acções que atenuam o grau das incertezas que marcam a contemporaneidade.

Contudo, o dinamismo da nossa realidade tem dificultado uma construção reflexiva do conhecimento. Os riscos, como define o alemão Ulrich Beck, têm proliferado e densificado. Arquitectados socialmente, já não se limitam às catástrofes naturais ocorridas pontualmente, mas antes a perigos e desastres com cada vez maior recorrência. Assim, uma das faces mais visíveis das ambivalências que enformam a actualidade é, sem dúvida, a questão climática. E as inundações sucedidas nos últimos dias em Lisboa são um exemplo de como as alterações climáticas se podem conjugar com mau planeamento urbano.

Um dos impactos que Beck afirma serem detidos pelos riscos dos nossos dias é o seu efeito bumerangue. No fundo, é a ideia de que tudo o que vai volta. Ou seja, os países mais industrializados podem ter beneficiado de alguns avanços económicos e tecnológicos e as consequências podem ter recaído, numa primeira fase, em territórios de menor desenvolvimento; porém, mais cedo ou mais tarde estas intempéries alcançam as nações mais ricas causando incontáveis danos materiais e perdas animais e humanas.

Lisboa é a capital de um país da União Europeia e do hemisfério Norte, com um nível de riqueza substancialmente superior ao de outros territórios do sul global, e temos visto que não deixa de ser uma cidade afectada por problemas ambientais. É curioso, no entanto, que nesta modernidade alegadamente proclamadora das atitudes racionais, portanto, lógicas e coerentes, a estruturação infra-estrutural e paisagista de Lisboa tenha resultado em cheias recorrentes. A imprevisibilidade das alterações climáticas com a obviedade de uma má concepção do território constitui a tempestade perfeita para que a natureza domine e imponha o caos na nossa habitual postura de certeza arrogante acerca de tudo.

Outras dimensões pautam os paradoxos da modernidade tardia. Por exemplo, as emoções e o seu papel na formulação das nossas identidades oscilam entre a ansiedade constante e o vazio repetido. Dadas as mudanças velozes e intensas que o processo de modernização produz a nossa auto-imagem, o nosso self, é persistentemente fragilizado, esvaziando muitas vezes a segurança do modo como nos vemos e assumimos quem somos – o que origina todo o tipo de doenças do foro mental. Nas sociedades tradicionais as identidades estavam enraizadas e não possibilitavam a mobilidade social; nas sociedades modernas estas estão deslassadas e sem potencialidades de consolidação.

A política também é uma outra esfera onde se pode visualizar o carácter de crise da actual modernidade. Perante uma cidadania que deixa de funcionar como factor fixado e fechado ao Estado-nação ou às lógicas de contribuição através do trabalho e permite múltiplas reconstruções, em muitos sectores da sociedade, a prática cidadã revela-se precária, restringindo-se aos mecanismos básicos de manutenção da democracia (e.g.: o voto) ou ao activismo de sofá que, ao invés de uma cidadanização das redes sociais, proclama uma artificialização do ser-se cidadão. O que se traduz numa dissipação das diferenças e da sua comunicação efectiva em prol do estabelecimento de procedimentos sem vida, fenómenos contrários à pluralidade que tanto se advoga como forma de vida democrática e representativa das realidades quotidianas das pessoas.

Ante os dados que possuímos podemos adivinhar vários desafios que nos devem mobilizar enquanto seres humanos nos nossos vários papéis sociais que assumimos. Uma boa gestão do território, assente nos princípios da igualdade, justa distribuição dos recursos e prevenção de danos, não pode ser conseguida sem coragem política, quer por parte dos governantes, quer da nossa parte como populações de milhões de indivíduos que habitam os ecossistemas. Da mesma forma que o autoconhecimento é um motor para a acção colectiva, sem o qual não podemos combater a despolitização e a desterritorialização das identidades nem conseguimos agir por um mundo melhor. Contra uma modernidade desorganizada é preciso que cada um de nós se erga organizadamente!

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