O fim do ICNF — mal-amado, agora quase acabado
O ICNF (Instituto para a Conservação da Natureza e Florestas), apesar de ser pouco conhecido, desempenha um papel importante, é a entidade responsável pela preservação e restauro do mundo natural no país.
Se fosse uma entidade ao nível das melhores da Europa, seria motivo de orgulho nacional, o seu nome reconhecido pelo público e os sucessos seriam abertura de noticiários e capas de jornais. Mas o ICNF não é uma das melhores, talvez seja uma das piores entidades governamentais responsáveis pela conservação e restauro da natureza no continente europeu, é mal estruturada, tem pouca ou nenhuma visão estratégica e tem fracos resultados no terreno.
Um olhar atento revela nos últimos anos mais escândalos que resultados. O restauro das populações de lince ibérico (um grande sucesso) contrasta com incêndios nas áreas protegidas (ardeu a serra da Estrela e o parque da Arrábida no Verão passado). A condenação pelo tribunal europeu certifica a fraca qualidade do trabalho do ICNF na preservação de espécies e habitats.
A aposta em floresta biodiversa é traduzida em mais licenças para plantar eucaliptos, gestões florestais danosas (mata dos Medos, Lousã ou pinhal de Ovar) e gestão do “abandono”. Uma gestão de “proximidade”, fundamental para prevenir conflitos e garantir benefícios para as comunidades perto de zonas naturais, significa para o ICNF reuniões em palácios na capital e inexistência de diretores para as áreas protegidas.
É um exercício curioso ver as últimas declarações do secretário de Estado e olhar para o último despacho do Diário da República, um diz que a conservação da natureza fica no ICNF, outro diz que a transferência de funções é quase total para as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR).
Funções na gestão de áreas protegidas, no controlo de invasoras, na promoção do turismo de natureza, na elaboração de planos de gestão de áreas naturais, no apoio aos centros de recuperação de fauna, na aprovação ou não de projetos em áreas classificadas, a acompanhar iniciativas de conservação, até definir objetivos para a conservação da natureza em zonas classificadas Natura 2000, são várias as funções transferidas do ICNF para a CCDR.
Mais, uma entidade (CCDR) com um presidente eleito por autarcas pode exercer competências de licenciamento e fiscalização, quando as próprias autarquias integram o universo das entidades a fiscalizar. Portugal precisa de uma entidade só dedicada à conservação e restauro da natureza, se antes era segunda prioridade atrás das florestas, agora, com a transferência de mais responsabilidades para a CCDR, passa a ser quarta ou quinta, a lutar com muitas áreas por atenção, técnicos e financiamento.
Aos poucos, a entidade responsável pela conservação da natureza em Portugal vai desaparecendo. Quando passou de ICN (Instituto para a Conservação da Natureza) para ICNF (para incluir as florestas) foi uma machadada, com a cogestão das áreas protegidas mais uma machadada. Depois, veio a transferência para o ICNF da tutela da fiscalização dos animais de companhia, que deveria estar na DGAV, e que serviu para tornar o ICNF ainda mais inoperante.
Com esta vaga de transferências de competências, o ICNF passa a existir quase só em nome, será a estocada final. O tronco da árvore que era a conservação da natureza em Portugal está frágil, degradado, quase destruído. Quanto tempo até o ICNF desaparecer?
Quando outros países reintroduzem espécies localmente extintas ou pouco abundantes, Portugal ainda faz “monitorização”. Quando outros países centralizam funções numa entidade para dar mais força à conservação da natureza, Portugal espalha e dilui responsabilidades.
Quando outros países aproveitam a diminuição da atividade agrícola em terras marginais para criar novas áreas protegidas e expandir existentes, Portugal aposta em “paisagens humanizadas”. Quando outros países apostam no turismo de natureza para desenvolver regiões rurais com poucas oportunidades e restaurar a natureza, Portugal aposta em passadiços para ver lagos criados por barragens e encostas com eucaliptos.
O restauro das populações de animais que deviam e podiam existir em terras lusitanas acontece à boleia de Espanha, ao longo da raia (a cabra-montês no Gerês, o urso em Montesinho, o abutre-preto na Malcata, o veado-vermelho ao longo da fronteira, a águia-imperial no Tejo internacional). Não é por acaso que o último livro encomendado pelo ICNF tem o título Fronteira Viva, a fronteira é dos poucos sítios com melhoria dos valores naturais (mas não é graças à mão do ICNF, é graças à falta dela).
O quadro está feio, mas para melhorar é preciso contextualizar, informar e criticar. É preciso elevar o debate para além dos incêndios, é preciso mais escrutínio pela sociedade, é preciso esperar mais. Há casos de conservação e restauro da natureza bem feitos, com benefícios para pessoas e natureza, em Espanha, na Europa e no mundo (estudos de conservacionistas, análises de economistas, relatórios da UNO).
Numa época em que a informação é tão facilmente acessível, não há razão para o péssimo estado da conservação e restauro da natureza em Portugal. São várias as vozes a alertar para a decadência do ICNF e do mundo natural no país, desde pessoas “da casa”, como os vigilantes da natureza ou antigos funcionários, a velhas glórias do movimento ambientalista a novas vozes. O ICNF é mau por escolha, por incompetência das chefias e das políticas públicas mais do que pela qualidade ou motivação das pessoas a trabalhar no terreno.
Numa época-chave da história da humanidade, a conservação e restauro da natureza, uma das melhores maneiras de rejuvenescer zonas rurais, de combater as alterações climáticas e de inverter a perda de biodiversidade, não pode ser uma oportunidade perdida.
O ICNF precisa de ser renovado, não desmantelado, é demasiado importante para continuar a ser mal-amado.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico