Estado da União: as origens do discurso anual do Presidente dos EUA

Com toda a pompa e circunstância que rodeia o Estado da União, é compreensível achar-se que as tradições do discurso presidencial remontam aos tempos da fundação do país.

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O primeiro discurso do Estado da União — então conhecido como Mensagem Anual — foi feito em 1790 Reuters/EVELYN HOCKSTEIN

O sargento de armas da Câmara dos Representantes anuncia a chegada do Presidente dos Estados Unidos aos gritos. O Presidente entrega em mãos, ao líder da Câmara dos Representantes e ao vice-presidente, cópias em papel do seu discurso, como se isso não pudesse ser feito por email.

E os aplausos. As ondas intermináveis de aplausos que tornam o discurso muito mais longo do que podia ser — aplausos para a primeira-dama, para quem se senta ao lado da primeira-dama, para os militares e para os juízes do Supremo Tribunal e os membros do Gabinete da Casa Branca. Os aplausos de uma só bancada, os aplausos tentados e falhados e — é claro —, os aplausos e as ovações de pé de cinco minutos para cada manifestação de patriotismo.

Estranhamente, muita da história do discurso do Estado da União é moderna.

Porque é que existe?

Porque está na Constituição dos EUA. Segundo o Artigo II, Secção 3, Cláusula 1, o Presidente “prestará ao Congresso, de tempos em tempos, informações sobre o Estado da união e recomendará as medidas que julgue necessárias”.

O primeiro Presidente, George Washington, interpretou “de tempos em tempos” como “anualmente”; e “prestará ao Congresso” como “discursar perante uma sessão conjunta da Câmara dos Representantes e do Senado”.

Washington fez o primeiro discurso — então designado Mensagem Anual — a 18 de Janeiro de 1790, no edifício que albergava o Congresso, de forma temporária, em Nova Iorque. Tinha 1100 palavras (menos do que este texto) e foi muito seco: Washington fez uma lista com as coisas que o país devia fazer, como ter um Exército conjunto, uma moeda comum e procedimentos uniformizados para o processo de naturalização.

Porque é que o Estado da União é um discurso?

O segundo Presidente, John Adams, manteve a tradição de George Washington de proferir um discurso anual; mas o seu sucessor, Thomas Jefferson, quebrou a tradição e enviou a mensagem por correio. Oficialmente, por causa da aversão de Jefferson a tudo o que evocasse a monarquia; mas a colunista Karen Tumulty, do Washington Post, salienta que Jefferson tinha pânico de falar em público.

No século que se seguiu, todos os Presidentes seguiram o exemplo de Jefferson e enviaram os seus discursos por escrito, e nada impede que isso volte a ser feito no futuro — seja através de email, da rede social Twitter, ou até mesmo em forma de pergaminho.

Foi o Presidente Woodrow Wilson quem recuperou a tradição do discurso, em Dezembro de 1913. Antigo professor e especialista em instituições governamentais, Wilson defendia que a separação de poderes inscrita na Constituição era muito estrita, e procurou oportunidades para reforçar o poder presidencial e marcar a agenda política no Congresso.

“Washington ficou maravilhada”, titulava o Post no dia a seguir ao discurso, apesar de Wilson se ter limitado a ler o texto num tom monótono. Nessa altura, nem sequer existia microfone — segundo os historiadores da Câmara dos Representantes, as primeiras experiências de amplificação surgiram na década de 1920 e só em 1938 passou a haver um sistema de microfones de forma permanente.

Desde então, todos os Presidentes — com a excepção de Herbert Hoover — leram todos ou quase todos os seus discursos anuais. Franklin D. Roosevelt deu ao discurso o seu nome moderno — Estado da União —, e o seu sucessor, Harry S. Truman, fez o primeiro discurso televisionado.

Em raras ocasiões, os Presidentes da era moderna enviaram um dos seus discursos anuais por escrito; o último foi Jimmy Carter, em 1981, dias antes do fim do seu mandato. Em Janeiro de 2021 não houve Estado da União, já que Donald Trump não preparou um discurso antes da sua saída da Casa Branca; e o discurso de Joe Biden em Abril de 2021 foi apenas uma “comunicação”.

Porque é que acontece à noite?

Por causa das audiências, claro. A sério. O Presidente Lyndon B. Johnson, um mestre da política muito antes de ter chegado à Casa Branca, decidiu fazer o seu discurso em horário nobre, para poder falar directamente para milhões de norte-americanos, que podiam depois pressionar o Congresso a fazer o que Johnson tinha sugerido. Em Janeiro de 1965, o que Johnson sugeriu foi a “Grande Sociedade” – um ambicioso plano de segurança social, educação e aposta nas artes.

Porque é que existe uma réplica?

Basicamente porque o Partido Republicano pressionou os canais de televisão a transmitirem a sua réplica ao discurso de Lyndon Johnson em horário nobre. Dois dias depois do Estado da União de 1966, os republicanos apresentaram a sua resposta pela voz de um jovem congressista e futuro Presidente dos EUA: Gerald Ford.

Na maioria dos casos, as réplicas foram... estranhas. O cenário dignificante do Estado da União — a sala da Câmara dos Representantes, a bandeira dos EUA como pano de fundo — e o envolvimento da assistência dão força à mensagem dos Presidentes. A seguir vem a réplica, sempre num local diferente, sem assistência e com uma mensagem negativa.

Os partidos têm tentado reverter esta situação ao longo dos anos, com resultados díspares.

Num dos momentos mais marcantes, em 2013, o que chamou a atenção foi a boca seca do senador republicano Marco Rubio, mas os democratas também tiveram prestações constrangedoras.

Em 1972, congressistas do Partido Democrata estiveram uma hora a receber telefonemas de eleitores, com perguntas não ensaiadas; em 1985, foi transmitido um longo tempo de antena apresentado pelo futuro Presidente Bill Clinton; e em 2017, o antigo governador do Kentucky Steve Beshear respondeu ao primeiro Estado da União de Trump num restaurante em silêncio.

Porque é que o sargento de armas grita?

É missão do sargento de armas anunciar a chegada do Presidente dos EUA e de outros altos responsáveis. (O sargento de armas também tem tarefas durante todo o ano, como a coordenação do protocolo e da segurança na Câmara dos Representantes.)

Wilson Livingood serviu como sargento de armas durante 17 anos e anunciou aos gritos a chegada de três Presidentes: Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama. Homem de poucas palavras, Livingood disse um dia à CNN que treinava durante semanas, antes de um discurso, o anúncio da chegada dos Presidentes: “Sr./Sra. Speaker, o Presidente dos Estados Unidos!”

Quando Paul Irving assumiu o cargo, em 2013, também gritou; Irving foi forçado a renunciar em 2021, na sequência da invasão do Capitólio.

No ano passado, o sargento de armas William J. Walker usou um microfone disfarçado e não gritou o nome de Biden, o que não foi apreciado por algumas pessoas.

Quem se senta ao lado da primeira-dama?

No dia 13 de Janeiro de 1982, no meio de uma grande tempestade de neve, o voo 90 da companhia Air Florida partiu do Aeroporto Nacional de Washington. Lutou para ganhar altitude e embateu contra uma ponte antes de se despenhar no rio Potomac, matando 76 pessoas a bordo e quatro no solo.

De forma incrível, cinco pessoas sobreviveram graças a actos heróicos de testemunhas. Um desses heróis foi Lenny Skutnik, um funcionário público de 29 anos que se atirou ao rio e resgatou uma mulher.

Poucas semanas depois, o Presidente Ronald Reagan convidou Skutnik para se sentar nas galerias ao lado da primeira-dama, Nancy Reagan, durante o Estado da União. No discurso, Reagan falou sobre Skutnik, referindo-se à sua acção como “um exemplo do espírito do heroísmo americano”. Claramente embaraçado, Skutnik recebeu uma ovação e uma saudação do Presidente.

Desde então, os Presidentes têm convidado cidadãos comuns que se distinguem de alguma forma para se sentarem ao lado da primeira-dama no Estado da União. Durante muito tempo, estes convidados eram conhecidos como “Lenny Skutniks”.

Porque é que o Estado da União é sempre “forte”?

Seja quem for o autor do discurso, e independentemente do estado da economia ou da notícia em foco, desde 1983 que todos os Presidentes têm declarado que o Estado da União “é forte”.

Em 2022, Biden não se limitou a falar de força uma só vez. “O Estado da União é forte — porque vocês, o povo americano, são fortes. Somos mais fortes hoje do que éramos há um ano e dentro de um ano seremos mais fortes do que somos hoje.”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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