Em 2019, tendo como mote as desigualdades territoriais em Portugal, escrevi um megafone para este jornal intitulado "e se viver no campo fosse uma tendência?". O texto era na realidade, naquela época, um convite para uma reflexão que me parecia urgente.
Apontava e pintava como sendo uma solução ingénua, bonita e natural para a impossibilidade de pagar uma habitação na cidade a mudança para localidades no interior do país, apelando ao investimento logístico nessas regiões. Como se fosse possível resolver uma desigualdade criando outra desigualdade entre os eternos ricos e pobres da cidade e da periferia, sendo que os ricos, neste caso, são os cidadãos estrangeiros com um poder de compra avassalador face à grande maioria da população nacional.
Ingénuo e artificial da minha parte achar que os incomodados é que se devem mudar, nestas situações, e que o paraíso do sossego onde faltam infra-estruturas não é, de todo, uma má solução para todos nós.
Até pode ser uma boa solução, mas não resolve a raiz do problema - preços exorbitantes aos quais não podemos aceder nas cidades e habitações vazias, na grande maioria dos meses do ano, porque são, na realidade, segunda ou terceira casa de gente que vê o país como o último brinquedo chique de diversões, altamente recomendado, inclusivamente, por celebridades internacionais.
Mudei de opinião ainda que continue a achar que o interior do país merece investimento e que os endinheirados nómadas digitais têm no interior uma oferta interessante de vida, caso a rede móvel se faça acompanhar. Ouvi alguém dizer, recentemente, que Portugal não se pode dar ao luxo de copiar um país de primeiro mundo, o Canadá, ao limitar a compra de habitações por cidadãos estrangeiros.
A meu ver, o país não se pode dar ao luxo de continuar a escorraçar para outros países os seus jovens e atirar para crescentes situações de sem-abrigo, ou extremamente precárias, os seus próprios residentes e os cidadãos imigrantes que aqui chegam, iludidos com o que o país vende na montra dos sonhos e das redes sociais.
Portugal, o país com um dos salários mínimos mais baixos da Europa e recordista olímpico em obras públicas medalhadas na ordem dos milhões, está longe de ser a Terra Prometida, inclusivamente para pessoas oriundas de regiões difíceis e igualmente precárias. Até quando receberemos os outros sem qualquer política sustentável para lhes garantir a eles e a todos nós uma vida digna? Imaginar a vida daquelas 22 pessoas hospedadas num T0 da Mouraria embrulha o estômago a qualquer ser humano e é claramente uma bandeira vermelha.
Vimos ser mastigado pelos governantes o tema da limitação do alojamento local durante um tempo demasiado eterno porque o PIB do país tem como principal sustento o turismo e, sem ele, não podemos sobreviver, mesmo que isso custe a educação de uma geração que se demite devido à impossibilidade de pagar uma renda de casa nas cidades universitárias.
Olhamos para o decréscimo da taxa de natalidade como sendo um problema e cavamos ainda mais essa realidade, dizendo aos mais jovens que não têm como não habitar em casa dos progenitores até aos 30 e alguns anos de idade, fintando os benefícios e as obrigações que a biologia nos impõe para gerar indivíduos saudáveis.
Por fim, é triste ver que uma pequeníssima fasquia da população portuguesa está a vender, a troco de uns milionários euros, o nosso país, a nossa identidade e a nossa dignidade de vida.
Talvez vivamos num tempo em que não devam ser apenas os professores, os enfermeiros, os polícias e os médicos a sair à rua. Talvez exista uma autêntica chamada social para a construção de um altar-palco feito com uma massa humana de cidadãos descontentes, à escala nacional, com o rumo do país.