O lugar da Europa num mundo pós-Ocidental cada vez mais dividido
Se a guerra em curso na Ucrânia fomentou a união do Ocidente e da Europa em particular, também expôs um abismo entre a percepção do Ocidente sobre a Rússia e a de outros países.
Um ano após a invasão russa da Ucrânia, está em curso uma remodelação determinante da ordem internacional. O Ocidente, unido pela primeira vez em anos, redescobriu o seu propósito. Entretanto, noutras latitudes, há uma competição crescente pela liderança geopolítica entre as potências emergentes.
Na Europa, o conflito suscitou preocupações relativamente à capacidade do continente para se defender e à escala do seu apoio ao esforço de guerra ucraniano, com as ofensivas de Primavera a aproximarem-se. Ao mesmo tempo, também pôs a nu a complexidade de a UE se retirar, a longo prazo, da dependência que há muito tem da energia russa. No seu conjunto, estas circunstâncias colocaram problemas a posições tanto nacionais como comunitárias sobre o conflito, que vieram a resultar em desacordos, ora mais abertos, ora mais dissimulados – nomeadamente nas cambalhotas em torno do fornecimento de tanques Leopard e, de modo mais persistente, na abordagem da Hungria, ao deixar arrastar as sanções à Rússia.
No entanto, a um nível acima da crescente divisão política sobre como apoiar a Ucrânia na sua luta, parece que a opinião pública sobre a necessidade de o fazer se vai mantendo sólida. Uma nova sondagem – levada a cabo em dez países europeus, bem como na Índia, na Turquia, na China e na Rússia – divulgada esta semana pelo European Council on Foreign Relations (ECFR) constatou que, apesar dos desafios do ano passado, os europeus continuam unidos no seu apoio à Ucrânia e no seu desejo de ver a Rússia derrotada no conflito.
Esta posição reflecte-se, sobretudo, na união dos europeus no abastecimento energético do bloco. A sondagem do ECFR mostra que há uma maioria, na UE-9 inquirida, a apoiar um embargo contínuo ao combustível russo, apesar dos danos reais que este está a causar nalgumas economias nacionais. No que diz respeito à percepção que os europeus têm da Rússia, também é revelador, um ano depois, que mais de dois terços dos cidadãos da UE-9 (66%) e da Grã-Bretanha (77%) vejam a Rússia como um “adversário” ou “rival” do seu país – uma posição que os coloca em sintonia com os EUA (onde 71% manifestaram esta opinião).
Porém, se o conflito fomentou a união do Ocidente e da Europa em particular, também expôs um abismo entre a percepção do Ocidente sobre a Rússia e a de outros países. Embora exista alguma semelhança em quererem um fim para o conflito, as condições em que isto pode ser conseguido diferem, marcadamente, entre o “Ocidente” e o “Resto”, segundo a sondagem do ECFR. Na Europa e nos EUA, por exemplo, a opinião predominante entre os inquiridos é a de que a Ucrânia precisa de recuperar todo o seu território, mesmo que isso signifique uma guerra mais prolongada. Já uma opinião contrária pode ser encontrada na China, na Turquia e na Índia, onde a maioria dos inquiridos prefere um fim rápido da guerra, mesmo que isso signifique uma cedência de território à Rússia por parte da Ucrânia.
A reputação da Rússia – quase um ano depois da chamada "operação especial" de três dias, por parte do Kremlin – também varia muito. A sondagem do ECFR revelou que três quartos dos inquiridos na China (76%), na Índia (77%) e na Turquia (73%) vêem agora a Rússia como mais forte ou tão forte como há um ano. Também há a opinião estratosférica, nalguns países, de que a Rússia é um "aliado" ou um "parceiro" global do seu país: na Índia (80%), na China (79%) e na Turquia (69%) – em forte contraste com as respostas da UE-9 e do resto do Ocidente, onde a Rússia não só é vista como fundamentalmente mais fraca, mas também descrita como um país “agressivo” e “não digno de confiança” por grandes percentagens.
No entanto, talvez a divisão mais pronunciada seja revelada na forma como os cidadãos vêem o estado do mundo e a futura ordem global. A sondagem mostra que, aqui no Ocidente, o legado da Guerra Fria continua em alta e a moldar a opinião pública. Há uma forte convicção de que estamos a entrar num mundo bipolar, liderado, respectivamente, pelos EUA e pela China. Mas, noutros países, em particular entre potências emergentes, como a Índia e a Turquia, esta visão não se mantém. Nestes dois casos, os inquiridos vêem o seu país como um actor em crescimento no panorama internacional – e, por sua vez, prevêem o desenvolvimento de uma ordem mundial multipolar, que será dividida entre diversos centros de poder. Num cenário desses, o Ocidente seria um pólo único, entre muitos, e não seria nem o definidor da ordem nem o líder da democracia global.
Este cenário colocaria a Europa – e, de forma mais ampla, a aliança ocidental – numa posição sem precedentes, como defensora de uma ordem baseada em regras, mas, em última análise, com uma diminuição do poder.
Os líderes europeus e ocidentais fariam bem em valorizar as ambições de potências concorrentes, que podem desviar-se no seu posicionamento face à guerra, mas que subscrevem os méritos de uma ordem internacional baseada em regras. Ao mostrar alguma humildade, especialmente nos seus compromissos com países que se encontram na linha da tradicional divisão democrática e autoritária – como a Índia e a Turquia –, a Europa não precisa de abandonar os seus valores. Em vez disso, poderia defendê-los, como parte de uma nova coligação de potências com os mesmos interesses.
Este exercício exigirá um acto de equilíbrio diplomático, por um lado ao persuadir os centros de poder emergentes e trazê-los para a definição de compromissos fundamentais, ao mesmo tempo que compreende as prioridades desses países e o modo como a opinião pública interna cada país molda a diplomacia. Os próximos meses serão um teste para determinar se os líderes europeus estão preparados para o desafio e se estão aptos a reforçar a posição da Europa num mundo pós-Ocidental cada vez mais dividido.
Susi Dennison é investigadora sénior de assuntos políticos no European Council on Foreign Relations (ECFR)
Tradução de Nelson Filipe