Pobreza, rua e representação social
Segundo a OCDE, num estudo de 2019, em Portugal são precisos 125 anos para uma família sair da pobreza. Há uma imobilidade total, o que põe em casa os direitos e garantias da Constituição.
As últimas semanas têm sido pródigas em discussões sobre pobreza, modos de vida, sobrevivência e contestação.
O que vivemos agora é consequência de vários ajustes económicos a nível global – a crise do subprime e da troika, a pandemia de covid-19 e agora o conflito na Europa, para não ir mais longe – reforçada por políticas nacionais. Do que sabemos, o mundo ficou sempre mais desigual a seguir a cada uma dessas crises e consequentes medidas de austeridade.
Segundo o INE, somos um país com mais de dois milhões de pessoas em risco de pobreza (16,4%). Se descontarmos as transferências sociais o valor sobe para 43,3% (37% em 1994). Isso quer dizer que quase metade da população vive num certo limiar de fragilidade e, desenganem-se os populistas, ninguém gosta de estar nesse limbo.
Perante os números, pode dizer-se que Portugal é um país que mantém um contingente populacional estruturalmente em risco, com condições de vida precária ou perto de disso.
Neste panorama, a subida generalizada dos preços, foi o sismo que faltava para pôr em causa o frágil contrato social da sociedade portuguesa.
Diz-se que a inflação atinge as famílias de diferentes formas, mas o que significa isso?
Na nota intercalar do “Portugal, Balanço Social 2022”, da SBE Nova, podemos encontrar algumas dessas respostas. Vinte por cento dos indivíduos mais pobres têm uma despesa superior ao rendimento. Os produtos alimentares têm um peso de 19,2% na despesa das famílias mais pobres e de 11% nas mais ricas. Quanto às rendas, o peso no orçamento das famílias mais pobres é 6,9 vezes superior ao das famílias ricas. As despesas de saúde, gás e electricidade, gasolina/gasóleo e de transportes públicos é também superior nas famílias mais pobres.
Claramente, o perfil de despesa das famílias mais pobres centra-se nos consumos essenciais, e o que têm vivido essas famílias nos últimos tempos? Aumentos recordes nas rendas da habitação, subidas das taxas de juro e correspondente aumento na prestação do crédito à habitação, aumento dos preços dos combustíveis, aumentos nas comunicações, aumento do número de sem-abrigo, lisboetas a morrer em casas sobrelotadas e aumento do preço dos bens alimentares essenciais (segundo a DECO um cabaz de alimentos essenciais aumentou 24,52% de 2022 para 2023).
O que essas famílias não vivem, mas veem são os lucros recorde das empresas de energia, dos bancos, retalho, e até o Estado tem superavit.
Ou seja, há um testemunho colectivo de que a riqueza existe, está é mal distribuída.
Segundo a OCDE, num estudo de 2019, em Portugal são precisos 125 anos para uma família sair da pobreza. Há uma imobilidade total na sociedade portuguesa, o que põe em casa os direitos e garantias da Constituição da República Portuguesa.
Durante muitas décadas, o sistema político e as políticas públicas enfrentaram as questões da pobreza e população afectada com um olhar de vanguarda, paternalista, habituado que está a um situacionismo institucional. Os sinais de alarme dessa estrutura conservadora já são por mais evidentes: aumento da abstenção, anomia social, populismo, consanguinidade nos cargos públicos, desconfiança generalizada.
Depois, acrescente-se, há uma reacção defensiva ao aparecimento de novos actores. São logo apelidados de movimentos inorgânicos. Essa atribuição resulta fundamentalmente da distância entre quem pode intervir na esfera pública neste país e a realidade vivida. Quem está na base da pirâmide económica do país tem laços afectivos e redes de solidariedade desconhecidas do grande público, mas completamente orgânicas para os seus constituintes.
Por isso devemos ter renovada esperança quando surgem movimentos de base como o Vida Justa, disponíveis para vir a público – como no próximo dia 25 de Fevereiro, para refrescarem o jogo de actores que tece as decisões colectivas.
Não estamos habituados que a base da pirâmide venha a público, num país onde até a representação social é um privilégio. Esperemos que isso mude em breve.