}

Logísticas da morte

A minha mãe faleceu precoce e subitamente. Enquanto família, adivinhámos os passos burocráticos para anunciar legalmente que esta pessoa já não existia. As idas às Finanças, ao Banco, ao Notário.

Foto
Morte Paulo Pimenta

Uma história sobre luto.

Na Idade Média, a preparação para a morte subscrevia à ars (bene) moriendi. Um guia de estilo espiritual visava salvar a alma do purgatório, levando-a para o céu instantaneamente. Salus hominis in fini consistit.

Em Maio do ano passado, faleceu a minha mãe precoce e subitamente. Não, ela não deixou um guia de estilo. Enquanto família, adivinhámos um funeral, o que fazer com o corpo, em que cemitério o deixar. Adivinhámos os passos burocráticos para anunciar legalmente que esta pessoa já não existia. As idas às Finanças, ao Banco, ao Notário. Nesse momento, aprendi que morrer é difícil, estranhamente trabalhoso.

Morrer custa. O inevitável tem um preço e rouba tempo. Afinal a primeira ida às Finanças para declarar o óbito, (que leva consigo tempo de espera em filas intermináveis) não basta. Depois de um funeral e do “aluguer” num ossário, é preciso completar uma miríade de outras tarefas, desnecessariamente manuais e, talvez deliberadamente, contra-intuitivas onde é preciso sentar-me com essa realidade e anunciar vezes sem conta a diferentes entidades as palavras que quase começam a perder significado depois de tantas vezes repetidas: “Sim, esta pessoa que eu amo morreu. Sim, esta pessoa que eu amo morreu. Sim, esta pessoa que eu amo morreu.”

O pior momento da minha vida transforma-se numa tarefa, no quotidiano. Isso não apazigua. Mas não me posso demorar demasiado a deitar-me nesse buraco. Há peças do puzzle burocrático para se juntar, que me obriga a pôr o dedo na ferida incessantemente. Tantas foram as vezes que saí de mãos a abanar de um edifício das entidades responsáveis pela morte, mais confusa do que quando lá entrei porque as indicações que o trabalhador com quem falei anteriormente não são as mesmas que este trabalhador diz precisar.

Três meses antes do falecimento da mãe, a Organização Mundial de Saúde reconheceu o luto prolongado como um transtorno. Esta foi a mais recente adição ao Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) publicado no mesmo ano. Este distúrbio consiste, para adultos, num luto persistente depois de um ano e de seis meses para crianças e adolescentes.

Na minha situação, já passou quase um ano desde o facto. Ainda não consigo imaginar uma vida fora dele. Talvez não seja totalmente possível. Mas se existe uma arte para a morte, certamente haverá uma arte para o luto. Ainda não a encontrei escrita e talvez seja por isso que me fazem crer que não estou a colaborar. Existe um prazo subentendido: a simpatia pós-morte estende-se mais ou menos até umas semanas após o funeral. Depois disso, espera-se que a vida “normal” prossiga. Quando a tristeza inicial se transforma em irritabilidade, já não sou uma pessoa em luto, mas sim uma pessoa errática. A engrenagem da normalidade não pára. O processo de luto não é compatível com um mundo optimizado como o de hoje. E o luto torna-se, então, patológico, “persistente”.

E o tempo passa. As logísticas da morte parecem ser impenetráveis. O tamanho da burocracia impede a vida a quem vive ainda. A reintegração na vida normal, nos interesses pessoais, nas relações interpessoais é, com certeza, uma arte, mas uma arte solitária. Ninguém me avisou que morrer era tão laborioso.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários