Fim ao gás, rumo à Primavera
A Primavera começou no dia 21 de Março de 2023, um dia depois de ter saído o último relatório síntese do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC). Este relatório é produzido por um conjunto vasto e representativo de cientistas internacionais e é o resumo das principais conclusões e descobertas relativamente aos anteriores, publicados entre 2018 e 2023. Em palavras simples: sem ação climática decisiva por parte dos governos mundiais até ao final da década encaminhamo-nos para o colapso.
Para limitar o aquecimento da Terra a 1,5ºC, barreira teórica a partir da qual o sistema climático global começa a alimentar o aquecimento por si mesmo, é necessário cessar qualquer novo projeto de exploração de combustíveis fósseis. A Agência Internacional de Energia (AIE) também reitera esta ideia ao afirmar que quaisquer novos desenvolvimentos de petróleo ou gás colocam este limite em causa. Não só necessitamos de travar quaisquer novos projetos, como precisamos mesmo de fechar várias infraestruturas fósseis em funcionamento.
As políticas atuais dirigem-nos para um cenário de 3.2º de aquecimento acima dos valores pré-industriais, quando já sabemos há vários anos que é preciso reduzir 50% de emissões globais até 2030. O IPCC garante que não é uma lacuna tecnológica ou tampouco a falta de conhecimento que está a bloquear a transição. Isto é, por si, um facto simultaneamente frustrante e animador. Se, por um lado, revela como a máquina predadora do capitalismo fóssil é tão capaz de se autodefender, por outro, garante-nos o poder da ambição. Estes objetivos apenas são alcançáveis com uma transformação brutal do sistema económico a nível mundial, a par do justo comprometimento dos que têm responsabilidade histórica perante os danos: a indústria fóssil.
O ano que passou foi o ano de ressurgimento da indústria de gás. Sabendo que o gás é um combustível fóssil, qualquer projeto de expansão de gás é um atentado à nossa sobrevivência. Contudo, a invasão da Ucrânia pela Rússia e o consequente bloqueio parcial da entrada de gás na Europa, também se tornou uma oportunidade para as indústrias fósseis expandirem a sua infraestrutura, com planos de aumentar importações de países como Estados Unidos, Arábia Saudita, Qatar, Emirados Árabes Unidos ou Nigéria.
Projetos catastróficos que estavam parados, como LNG Moçambique e Rovuma LNG, também em Moçambique, foram apoiados financeiramente por bancos a nível internacional ou estão em negociações abertas. Outro projeto, como o gasoduto da África Oriental ( EACOP), continua a ter apoio financeiro para ser construído.
Sabemos também que organismos como a União Internacional do Gás (UIG), que representam o gás fóssil mundialmente, com 150 membros a responderem por 90% do mercado de gás fóssil, têm uma estratégia de comunicação e, portanto, um lobby, assente em puro negacionismo climático. As suas campanhas contra as restrições financeiras à expansão da rede de gás baseiam-se na narrativa (espante-se!) de que o gás é, por um lado, um baixo emissor de carbono e, por outro, um agente da redução da pobreza energética e monetária, servindo e melhorando a vida das pessoas.
Todos os projetos de gás são, além de uma bomba climática, um atentado à vida das comunidades. Milhões de pessoas no continente africano foram e continuam a ser deslocadas devido à construção de mais infraestruturas de gás, ora tornando-se refugiadas internas, ora vivendo em centros de refugiados. Muitas das famílias deslocadas encontram-se sem acesso à pesca ou a terras que eram os seus meios de subsistência, o que é mais um fator de empobrecimento de comunidades já vulneráveis.
Além disso, estas indústrias são a principal causa dos conflitos e violência vividos nos locais de extração, dada a indignação e negligência sentidas pelas comunidades que em nada beneficiam da sua atividade. Esta é a realidade inequívoca em Cabo Delgado, Moçambique, onde os projetos de LNG devastaram a sociedade e onde a própria viabilidade do Estado está em causa. Só os interesses da indústria podem ver no gás uma promessa de prosperidade e desenvolvimento, só a sua máquina comunicacional promete futuro no caos que semeia.
Com o ressurgimento do gás, lucros históricos viram a luz do dia. Enquanto acionistas dos gigantes da Saudi Aramco, ExxonMobil, Shell, Chevron, Total ou BP enchem os bolsos, milhões de pessoas perderam a capacidade de pagar as contas de eletricidade. A AIE declarou explicitamente que o gás sozinho é responsável por mais de 50% do aumento dos custos médios de geração de eletricidade. A crise de custo de vida que todos estamos a sentir não é mais do que um reflexo dos lucros de gás – pagos pelas pessoas de todo o mundo. Portanto, qualquer investimento feito em gás garante, neste momento, uma crise de custo de vida contínua e o caos climático.
Enquanto as empresas de gás lucram com a nossa miséria comum, aconteceu a Conferência Europeia de Gás em Viena, de 26 a 29 de Março, qual cereja no topo do bolo. Empresas de gás, financiadores, lobbyists e políticos encontraram-se para, atrás de portas fechadas, aprovarem novos projetos de gás fóssil que aquecerão os seus bolsos e o planeta. Os governos continuam complacentes com estes planos, o que os torna não menos cúmplices no caminho para o colapso. Ali, centenas de ativistas bloquearam a conferência anunciando que o próximo será o Último Inverno de Gás, o ocaso desta indústria. Enfrentaram forte repressão policial, o que deixou claro que a máquina do capitalismo fóssil continua a defender-se com toda a violência de que dispõe.
A indústria fóssil entende a ação climática ambiciosa como a sua principal ameaça existencial, porque esta se refletirá diretamente na diminuição dos seus lucros. Energia e Habitação são direitos básicos, não um luxo, e por isso é que no dia 1 de Abril também saímos à rua na manifestação pelo direito a uma casa para viver. E, por isso, é que no dia 13 de Maio acontecerá o protesto coletivo mais disruptivo e criativo da história do movimento climático em Portugal, com o bloqueio do Terminal de GNL do Porto de Sines.
São poucos a querer boicotar a Primavera, contra muitos a querer salvá-la. As novidades são antigas: a Primavera está nas nossas mãos – mas só chegará depois de garantirmos que este será, de facto, o último Inverno de gás.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico