Itália vai proibir a carne criada em laboratório — mas devia repensar a decisão
Produzir carne em laboratório pode ser uma alternativa mais saudável para o ser humano, para os animais e para o ambiente.
Alguns cientistas criaram recentemente uma almôndega com a carne do extinto mamute-lanoso. A almôndega foi o produto de um dos mais promissores avanços tecnológicos deste século — a agricultura celular.
Por vezes chamado de "carne de laboratório", o processo envolve a produção de produtos animais a partir das suas células num ambiente de laboratório controlado. O processo elimina muitas das preocupações ambientais, de bem-estar animal e de saúde humana que estão hoje associadas aos sistemas de pecuária industrial.
Mas os produtos animais produzidos em laboratório ainda não são tão populares quanto poderiam ser. Singapura e os Estados Unidos são, até agora, os únicos dois países onde a carne de laboratório pode ser vendida legalmente aos consumidores. A Autoridade Europeia de Segurança Alimentar ainda está a avaliar os potenciais riscos associados aos produtos animais de laboratório.
E a 28 de Março, o ministro italiano da agricultura, Francesco Lollobrigida, anunciou que o país seria o primeiro a proibir os alimentos produzidos em laboratório. A razão para a proibição relaciona-se principalmente com a protecção dos agricultores italianos. Mas o Governo também expressou preocupações sobre a qualidade dos alimentos sintéticos e a sua ameaça à orgulhosa herança culinária italiana.
Contudo, a carne produzida em laboratório tem o potencial de oferecer uma fonte alimentar muito mais sustentável do que a criação tradicional de animais que também poderia ajudar a reduzir a propagação de doenças.
Como são produzidos os produtos à base de carne?
Os cientistas podem produzir tecido muscular sintético reproduzindo o processo de regeneração celular que ocorre naturalmente nos músculos de um animal. Esta tarefa é realizada com recurso às células estaminais, que são especializadas na divisão celular. As células são recolhidas através de uma amostra de tecido de um animal vivo antes de serem isoladas e cultivadas em condições que se assemelham ao corpo do animal.
Actualmente, produzir um hambúrguer demora cerca de quatro semanas. Mas há um conjunto de produtos animais que poderia nascer num laboratório, incluindo marisco e leite.
Menos recursos
Há cada vez mais preocupações sobre o impacto climático da produção de carne.
Actualmente, só a produção animal consome 70% das terras aráveis do mundo e utiliza grandes quantidades de água — e pode aumentar ainda mais no futuro. O consumo de carne deverá duplicar até 2050, à medida que a classe média cresce na China, Brasil, Índia e em toda a África.
Mas, se for numa escala maior, a carne criada em laboratório utilizaria substancialmente menos terra e água. A investigação conclui que é preciso menos 99% da terra para produzir um quilograma de carne de laboratório do que precisam as explorações europeias para produzir a mesma quantidade.
Produzir um quilograma de carne num laboratório também utilizaria entre 82% e 96% menos água do que uma exploração pecuária tradicional, dependendo do produto comparado.
Menor risco para a saúde
A criação de carne a partir de células também pode reduzir o risco de desenvolvimento de doenças e prevenir o sofrimento desnecessário dos animais.
Há questões óbvias de bem-estar associadas à aglomeração de animais nas quintas. As condições em que vivem também tornam doenças como a gripe das aves, a doença das vacas loucas e o vírus da peste suína africana mais susceptíveis de se desenvolverem e propagarem.
Entre 2018 e 2019, cerca de 225 milhões de suínos na China morreram ou foram abatidos devido ao surto de peste suína africana. Isto equivale a cerca de um quarto da população mundial de porcos.
Os criadores de animais utilizam antibióticos para prevenir a propagação de doenças, mas a sua utilização excessiva está a contribuir para um aumento da resistência. As Nações Unidas estimam que, até 2050, a resistência aos antibióticos conduzirá a mais mortes do que o cancro em todo o mundo.
A carne produzida em laboratório também é mais segura para consumo no que toca a bactérias. As células utilizadas na produção de carne de laboratório são cuidadosamente rastreadas para garantir que não estão contaminadas com agentes patogénicos infecciosos.
Os produtos de carne que são produzidos a partir de células estão também isentos de contaminação por bactérias fecais como E. coli, salmonela e listeriose. Estas bactérias vivem dentro do intestino de um animal e podem contaminar a carne quando o animal é abatido.
Uma alternativa amiga do ambiente?
Os sistemas de pecuária industrial — particularmente as explorações pecuárias — são responsáveis pela emissão de enormes quantidades de gases com efeito de estufa como CO₂ e o metano. Mas a produção de carne a partir de células pode ter uma pegada ambiental semelhante — ou até maior.
As tecnologias alimentares celulares geram mais CO₂ (até 22,1 quilogramas de CO₂ por quilograma de carne) do que as explorações de gado convencionais actuais (que produzem até 5,4 quilogramas CO₂). Isto acontece porque a manutenção das condições certas para o crescimento celular num laboratório consume muita energia.
A carne criada em laboratório produz, no entanto, menos metano do que a criação convencional de gado. Isto variará dependendo do método de criação utilizado, mas em média, um quilograma de carne criada em laboratório produz até 0,082 quilogramas de metano. Em comparação, um quilograma de carne produzida numa exploração convencional pode gerar até 1,2 quilogramas de metano.
O metano tem um potencial de contribuir para o aquecimento global 25 vezes maior do que CO₂. Mas permanece na atmosfera por muito menos tempo — cerca de 20 anos em comparação com os séculos que dura CO₂. Isto significa que o CO₂ que se acumula no ambiente irá alimentar o aquecimento global durante muito tempo após a sua emissão. Assim, o aumento da tecnologia de alimentos celulares para produção em massa antes da descarbonização dos sistemas energéticos é arriscado.
A carne produzida em laboratório tem o potencial de tornar o nosso sistema alimentar mais sustentável. À medida que os sistemas energéticos forem descarbonizados, esta nova forma de alimentos só se tornará mais atractiva. Mas a aplicação em massa da tecnologia exigirá muita vontade política. E, tal como demonstrado pela provável proibição da Itália, a vontade política está em falta.
Exclusivo PÚBLICO/The Conversation
Silvia Malagoli é investigadora de pós-doutoramento em Ciências da Pesca da Universidade de Strathclyde