Património cultural: o mal e a caramunha

Chegámos a um ponto em que não importa a direcção a seguir e o objectivo final a alcançar, circunstância em que, como o lobo dizia a Alice, todos os caminhos servem.

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No meio da opereta em que se vai convertendo a vida política portuguesa, quase passou despercebida a iniciativa do Governo de promover junto da Assembleia da República legislação que dispense de parecer da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) intervenções a realizar no perímetro de protecção de monumentos nacionais e outros imóveis classificados, "quando se trate de obras de alteração no interior de bens imóveis, sem impacto arqueológico ou sem impacto sobre elementos arquitectónicos relevantes e respectivo património integrado” ou [quando] “estejam em causa obras de conservação no exterior dos bens imóveis sem alteração sobre elementos arquitectónicos relevantes; e quanto à instalação de reclamos publicitários, sinalética, toldos, esplanadas e mobiliário urbano”.

Invoca-se em defesa desta liberalização o combate à burocracia, o que não pode deixar de ser visto positivamente pelos cidadãos, fartos como estão dos circuitos quase kafkianos a que são submetidos por parte da máquina administrativa do Estado, seja ele central seja local. No caso da DGPC, tal é particularmente evidente quando se verifica que os ditos perímetros de protecção podem incluir centros urbanos inteiros (caso de Évora) ou amplíssimas áreas em cidades onde se justapõem bens classificados (caso de grande parte da zona que vai de Belém a Algés, em Lisboa). Nestes espaços, somando às maçadas sem fim, às idas e vindas para acrescentar sempre mais e mais papéis (sem contar aqueles que se perdem), à submissão a pequenos gestos de poder frequentemente autocrático para fazer os ditos papéis circular entre secretárias, os serviços do Estado surgem como uma espécie de “porquinhos mealheiros” aos olhos das pessoas comuns, meros arrecadadores de taxas e taxinhas que no final lhes garantem partes significativas dos orçamentos.

Só que… só que quem agora pretende combater a burocracia através deste tipo de medidas é precisamente quem por décadas a promoveu em elevada escala. E este facto não pode deixar de causar a maior suspeita. Junto a outros de idêntica índole, cujo desfecho se desconhece ainda, cria-se uma situação potencialmente catastrófica, que importa denunciar.

O ponto é este: as direcções regionais de Cultura foram extintas e as suas competências aparentemente passadas para as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). Aparentemente, apenas, porém. Porque na verdade, mantendo-se a exacta formulação que tais competências tinham até aqui, aquilo que sucederá é um reforço da DGPC, vértice decisório de quase todas elas, naquilo que constituirá (ou constituiria) um reforço do centralismo administrativo, dentro de um quadro geral que se pretende de descentralização ou até de regionalização encapotada.

Passam os meses, já mais de um ano, sem que saibamos como afinal vai ficar a DGPC. Mas, a ser assim, tratar-se-á (ou tratar-se-ia) de algo tão inusitado que as reacções violentas dos presidentes das CCDR não se fizeram tardar, novamente em termos que para o comum cidadão fazem todo o sentido: como pretender, no referido quadro político, que a Fortaleza de Sagres ou o Palácio Ducal e Castelo de Guimarães passem a ser geridos e as suas receitas arrecadadas em Lisboa? Por muito que se observe que o cerne da questão não está aí, mas na potencial devassa do território, ao serviço de “facilitadores” locais e debaixo de modelos de desenvolvimento não sustentável, por muito que se invoque também a necessidade de políticas nacionais integrantes dos mais importantes ícones patrimoniais portugueses, os únicos que ademais geram receita líquida (assim compensando parcialmente todos os restantes que são e serão sempre altamente deficitários), a verdade é que ninguém, se não talvez apenas alguns especialistas mais persistentes na prossecução do que entendem constituir “bem público”, estará disponível para continuar a apostar nos princípios, em face da prática da vida.

Por muito que nos custe, “os ares dos tempos” estão virados noutro sentido, o da libertação de décadas de “planeamento centralista” e “burocracia democratizante”, boas intenções que ninguém hoje estará disponível para defender, como no seu tempo fez Max Weber. Dito de outra maneira: chegámos a um ponto em que não importa a direcção a seguir e o objectivo final a alcançar, circunstância em que, como o lobo dizia a Alice, todos os caminhos servem. E esta é afinal a “lição de proveito” a retirar perante a ironia amarga de serem os mesmos que fizeram o mal que agora promovem a caramunha. Avancemos, pois, alegremente, mesmo sem saber para onde. Quem vier a seguir nos julgará.

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