A solidão ataca o cérebro, o coração e faz muito mal
Quem vive em zonas muito poluídas tem uma probabilidade 5% maior de morte prematura, a obesidade aumenta a probabilidade em 20%, beber em excesso em 30%, mas o isolamento social é pior.
Praga é a minha cidade europeia preferida. Recordo-me de chegar, ao entardecer, à belíssima Praça de Stare Mesto e juntar-me a um aglomerado de pessoas, como que hipnotizadas, a ouvir um rapaz tocar e cantar Beatles, num cenário idílico. Foi daqueles instantes na vida em que senti um arrepio na espinha e os olhos marejados de lágrimas. Não era a única. A meu lado, um desconhecido com um olhar semelhante partilhou connosco: “Não acredito que estou aqui a viver este momento sozinho.”
Esta não seria, possivelmente, a primeira imagem de solidão que ocorreria a alguém lembrar. Mas foi a minha. Talvez o mais comum fosse a memória de uma pessoa isolada e triste, abandonada a um canto dentro do seu sofrimento, “juntando o antes, o agora e o depois”, como diria Caetano Veloso. Não alguém de quem “gostei de graça”, como expressam os brasileiros, fruto de uma afinidade espontânea, de um gostar pelo gostar e nada mais, e que no meio da multidão se emocionou com a beleza de um momento, fazendo jus à expressão “a verdadeira felicidade só existe quando é compartilhada”. Esta é a frase que surge também no profundo e impactante filme Into the Wild (O Lado Selvagem), baseado numa história real, que conta a vida de um jovem que parte numa aventura solitária para o Alasca e por lá passa o Inverno.
A investigação mostra que os momentos marcantes da nossa vida são experiências ligadas a outras pessoas. Precisamos mesmo dos outros e isso não é uma novidade para ninguém, porque somos seres gregários e sociais. Quem vive em zonas muito poluídas tem uma probabilidade 5% maior de morte prematura, a obesidade aumenta a probabilidade em 20%, beber em excesso em 30%, mas o isolamento social é pior! Aumenta a probabilidade de morte prematura em 45% e diminui a esperança média de vida de forma equivalente a fumar 15 cigarros por dia! O seu impacto faz-se sentir na saúde física, mental e social: doenças cardiovasculares, dor crónica, sistema imunitário, tensão arterial, colesterol, declínio cognitivo, demência, abuso de substâncias, níveis de stress, depressão, insatisfação com a vida, queda na produtividade e na coesão social.
A solidão ataca o cérebro e o coração e faz muito mal. Na última década, o número de portugueses a viverem sós aumentou 18%, representando agora cerca de um quarto das famílias. Contudo, solidão não significa estar só, mas sim sentir-se só e em sofrimento psicológico, independentemente do número de interações sociais existentes. É algo comum a uma imensa minoria, cerca de um terço das pessoas, e a pandemia evidenciou bem que não afeta apenas as pessoas mais velhas, com a juventude a ser afetada de forma mais severa. Não deverá ser atribuída, de forma simplista, a um traço de personalidade, mas enquadrada em desafios societais mais abrangentes.
A solidão instala-se quando existe uma discrepância entre o que desejamos e o que realmente obtemos nas relações sociais. O que faz verdadeiramente mal é uma pessoa sentir-se incompreendida e desapoiada, que não pertence, que as suas opções não são aceites e que não tem ninguém em quem confiar. Como se estivesse perdida de alguém que não nos sabe voltar a encontrar, num caminho de pedras desavindas que dificultam a chegada ao coração do outro.
A solidão faz as pessoas entrarem num modo de autoproteção e de defesa, de hipervigilância e de desconfiança. Distorce a visão do mundo, que passa a ser visto como mais ameaçador do que é. Também a utilização intensiva da Internet e dos chamados “snacks sociais” está associada a níveis mais elevados de solidão e pode ter efeitos depressivos e ansiogénicos, retirando tempo às interações ao vivo e contribuindo para o isolamento social.
Este problema de saúde pública tem levado países como o Reino Unido e o Japão a criarem Ministérios da Solidão. Até outubro de 2020, morreram mais nipónicos por suicídio do que por covid-19. Contudo, existe um estigma associado à solidão, que é vista como um fracasso neste mundo em que a publicidade nos enche de imagens de gente feliz a conviver. Por esse motivo, muitas pessoas negam-se a aceitá-la, dificultando intervenções mais eficazes. Tomar consciência de que nos sentimos sós é o primeiro passo para sair da solidão.
No livro Nós e os Outros: O Poder dos Laços Sociais, a psicóloga Luísa Lima refere que quem tem amigos com quem possa falar abertamente dos seus problemas e quem convive regularmente com amigos vive mais tempo e tem menos problemas de saúde. Não é importante se estas relações de proximidade são com pessoas de família, com colegas de trabalho, com vizinhos ou com amigos. Tão-pouco é importante ter muitas destas relações íntimas. O que interessa mesmo é a qualidade dos relacionamentos. Por isso, ter tempo para estar com amigos e cuidarmos uns dos outros não é um luxo! Quem está mais integrado socialmente está mais protegido quando as desgraças lhe batem à porta!
Para a maioria das pessoas, os sentimentos de solidão são temporários e situacionais, sem consequências negativas duradouras. Apenas quando a experiência de solidão se torna crónica é que poderá ser motivo de alarme. Como partilha Marta Rebelo sobre este mesmo tema: “Sofrer não é vergonha, mas não é sina! Temos de enfrentar as causas, ou duram-nos mais século e meio as consequências.”
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990