Animais e neurociências: consciência, necessidade e alternativas
Os modelos animais têm sido fundamentais para a compreensão de inúmeras patologias neurológicas, como doença de Alzheimer, doença de Parkinson, epilepsia e distúrbios psiquiátricos.
Um aspeto bastante controverso e importante no trabalho científico que fazemos é a utilização de modelos baseados em experimentação animal. Os cientistas são ou não conscienciosos na sua utilização? Qual a justificação? Até que ponto é necessário? Como podemos reduzir e encontrar formas alternativas?
Os modelos animais desempenham um papel crucial na investigação em biomedicina. No campo das neurociências, em particular, o estudo do funcionamento do cérebro noutras espécies permite-nos compreender o cérebro humano e as suas funções.
Embora nenhum modelo animal reproduza completamente as complexidades do cérebro humano, eles oferecem uma representação aproximada e por isso relevante, que permite aos cientistas compreender princípios e mecanismos fundamentais. Além disso, esses modelos permitem estudar a dinâmica dos circuitos neuronais, as ligações sinápticas e os efeitos das intervenções cirúrgicas e farmacológicas, uma vez que possibilitam a execução de procedimentos e manipulações muito precisas e tornam possível analisar estes dados ao longo do tempo. Também proporcionam um nível de controlo sobre fatores genéticos e ambientais, permitindo investigar o impacto de genes, moléculas e condições ambientais específicas no desenvolvimento e função cerebral. Esse tipo de experimentação controlada possibilita compreender a interação complexa entre predisposições genéticas e influências ambientais nas doenças neurológicas.
No entanto, todos concordamos que a monitorização e regulação éticas da utilização de animais em investigação são indispensáveis e devem ser rigorosas. Felizmente, nos últimos anos, houve um aumento na consciencialização em relação ao bem-estar animal e à importância de limitar o uso de modelos animais quando alternativas igualmente eficazes estão disponíveis. Atualmente, é obrigatório que um cientista que trabalhe com animais tenha formação e siga cursos específicos que ensinem os aspetos da fisiologia e bem-estar animal, bem como as regras para a utilização de animais em experiências, e as formas alternativas de conceber experiências sem recurso a animais e os princípios dos 3Rs (reduzir, reutilizar e reciclar) para minimizar o número de animais utilizados.
Além disso, antes de iniciar qualquer experiência, é necessário, em Portugal, obter a aprovação de uma comissão ética da instituição onde decorre o trabalho de investigação e da Direção-Geral da Alimentação e Veterinária, o que em conjunto, garantindo o cumprimento das normas éticas. Cientistas e instituições devem aderir a diretrizes e protocolos rigorosos para garantir o bem-estar dos animais e respeitar os princípios éticos.
Sempre que existam formas alternativas ao uso de animais igualmente eficazes do ponto de vista científico, é importante prioritizá-las. A tecnologia moderna tem permitido a criação de novos modelos e abordagens. Por exemplo, o uso de células de sangue ou da pele dos pacientes para extrair o material genético e promover a sua especialização (o termo cientifico correto é diferenciação) em células nervosas tem permitido estudar fatores de risco e mecanismos de neurodegeneração.
A troca global de dados científicos permite a reanálise de dados de outros cientistas para testar novas hipóteses ou compreender mecanismos sem a necessidade de repetir estudos (são designadas por experiências in silico). Modelos mais simples do cérebro, como células em cultura ou organóides (tecidos que reproduzem a estrutura cerebral em 3D), permitem estudar aspetos específicos do desenvolvimento cerebral e de patologias ligadas ao neurodesenvolvimento. Por outro lado, a ressonância magnética funcional permite estudar algumas facetas do cérebro humano em funcionamento, de forma não invasiva, sem a necessidade de modelos animais.
Então, por que ainda usamos animais em alguns estudos? Isso acontece porque existem patologias e mecanismos do cérebro humano que ainda não conseguimos reproduzir em modelos mais simples. A prova disso é o facto de muitos fármacos, que parecem promissores em animais, mais tarde não funcionarem em pacientes. Exemplos de estudos que ainda requerem modelos animais são os comportamentos ligados a doenças psiquiátricas, neurodegenerativas ou de adição, os estudos de cognição complexa, lesões cerebrais ou da medula espinhal e a manipulação de circuitos neuronais para entender exatamente como funcionam e intervir em caso de disfunção.
Os modelos animais têm sido fundamentais para a compreensão de inúmeras patologias neurológicas, como doença de Alzheimer, doença de Parkinson, epilepsia e distúrbios psiquiátricos. Eles fornecem uma plataforma para testar tratamentos potenciais, avaliar estratégias terapêuticas e verificar a segurança e eficácia de intervenções inovadoras, tanto farmacológicas quanto cirúrgicas, antes de avançar para ensaios clínicos em humanos. Estamos sempre a trabalhar na tentativa de ter modelos mais fiáveis e com poder de translação para pacientes, mas no caso do sistema nervoso central, tem sido complexo.
É crucial desenvolvermos cada vez mais alternativas à utilização de animais sempre que possível, mas reconhecer que, atualmente, ainda existem situações em que o uso de modelos animais é indispensável para avançar no conhecimento e no desenvolvimento de novas terapias.
Só conseguimos progredir entanto sociedade e melhorar o nosso respeito pela Natureza e pelos animais que permitiram estes avanços, se soubermos refletir sobre o assunto sem radicalizações e sem tabus. De forma consciente, informada e aberta a novas ideias e seguindo o exemplo do admirável José Mattoso, a quem presto homenagem este mês, sugerindo o livro Poderes Invisíveis, ao som de Space Oddity do incontornável David Bowie.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990