Quando a Adidas anunciou que terminava, com efeitos imediatos, a parceria com Kanye West, agora Ye, não se pode dizer que o mundo foi apanhado de surpresa pelas repercussões que as suas opiniões tinham vindo a ter ao longo dos meses anteriores em parcerias comerciais, que incluíam gigantes como a GAP e a JP Morgan Chase.
Nos dias que se seguiram ao anúncio, e porque a parceria tinha gozado de tanto sucesso, foi intensa a discussão acerca dos direitos de propriedade intelectual relativos às sapatilhas Yeezy. A empresa de Ye, Mascotte Holdings, Inc., detém várias marcas, entre elas a Yeezy e a YZY para uso em calçado e vestuário. O contrato celebrado com a Adidas previa o licenciamento da Yeezy desde 2016 até 2026, dando lugar ao pagamento, pela Adidas, de royalties em valor equivalente a 15% das vendas dos produtos comercializados sob a marca Yeezy.
A responsabilidade pelo design e produção desses produtos era da Adidas, sendo esta detentora de vários direitos de propriedade intelectual que incidem sobre, por exemplo, o modelo mais vendido – as Yeezy Boost 350 -, bem como sobre a marca SPLY-350, até à design patent americana que protege as características da sapatilha, detendo ainda o registo de copyright junto do US Copyright Office (e com isso fulminando uma divisão doutrinal e jurisprudencial já existente nos Estados Unidos).
Significa isto que, com o fim da parceria e apesar de todos os direitos da Adidas no que concerne às sapatilhas em si, a empresa alemã não poderá voltar a comercializar novas sapatilhas e chamar-lhes Yeezy. Contudo, alicerçada nos seus direitos de propriedade intelectual, e tendo em conta que se trata de stock existente, a Adidas está ainda a comercializar as sapatilhas Yeezy, tendo anunciado doar os lucros a organizações internacionais.
Por outro lado, o tema também é relevante a nível da liberdade de expressão e da repercussão dessa liberdade na obra do seu autor. Se a obra criativa não tem, à partida, qualquer conexão com a opinião do seu criador, será que eu – consumidor da sua obra – estou a alinhar com a visão da pessoa do artista?
Usar umas Yeezy é, de alguma forma, compactuar (ou, pelo menos, alinhar pela inércia) com os comentários anti-semitas de Ye? Este exercício teórico vai muito além de Ye e pode ser aplicado a grande parte da cultura ocidental do último século, existindo casos mais ou menos paradigmáticos, como Roman Polanski ou Woody Allen (no primeiro caso, com condenações em tribunal, no segundo, não).
A questão vai ainda para além das tendências da chamada “cultura de cancelamento”, pois efectivamente há dados que nos permitem avaliar que, num determinado contexto histórico e social, aquele certo artista tomou acções ou difundiu opiniões que são ilegais, imorais ou contrárias ao que seria comum e socialmente aceitável. Ao termos esta realidade em perspectiva, será que existem motivos para recear que os direitos e valores associados à obra perdem valor por motivos exteriores à mesma? Aparentemente, os investidores da Adidas acreditam que sim e levaram o tema para os tribunais.
A solução para estas questões não é fácil e provavelmente não existirá resposta uniforme para cada uma delas. De qualquer forma, do lado do consumidor de produtos ou conteúdos, minimamente atento e sensível, há uma decisão a tomar: se eu ouvir o fantástico (!) álbum The Life of Pablo novamente estou a ignorar as opiniões do seu autor ou estou, de alguma forma, a dar-lhes força – já que contará sempre para os dados da plataforma em que ouvir as músicas?
Este é um tema que só existe nos dias de hoje. Os primeiros consumidores de filmes de Hitchcock, por exemplo, não tiveram de tomar semelhante decisão, pois não sabiam que o seu autor, apesar do brilhantismo e mestria, era acusado de agressões sexuais por uma das estrelas dos seus filmes, Tippi Hedren. Hitchcock é um exemplo de entre vários da velha Hollywood.
A liberdade de expressão, no exemplo de Ye ou no de Hedren, força a sociedade a tomar decisões e a reflectir sobre os seus valores, e cada um de nós, individualmente, a envolver-se no rumo que a sociedade – através da cultura – toma.