Manuel Castells: “Os sistemas dos países não mudam por escolha, mudam por necessidade”
O sociólogo espanhol Manuel Castells aborda a crise da democracia liberal e a forma como os meios digitais e as redes sociais mudaram a nossa relação com o poder e com as instituições que o dirigem.
Manuel Castells moldou o nosso entendimento de dinâmicas políticas numa sociedade em rede. Professor universitário e Wallis Annenberg Chair em Comunicação, Tecnologia e Sociedade na Universidade da Califórnia do Sul, a carreira académica de Castells envolve a maioria das principais universidades do mundo. É autor de 35 livros e é ex-ministro das Universidades do Governo espanhol. O seu trabalho alterou a forma como pensamos a organização da sociedade na complexa realidade em rede. Nesta conversa discorre sobre a forma como podemos re-imaginar o poder.
Talvez devêssemos começar com uma das questões fundamentais. O que se entende por “poder”? E é tão importante porquê?
Mesmo que não pensem sobre poder, as pessoas estão numa relação de poder. A maioria delas numa posição subordinada de poder. Como tal, é importante saber o que é, especialmente se não estamos satisfeitos com o facto de nos encontrarmos sob uma estrutura específica de poder e se gostaríamos de a mudar. É importante saber o que queremos mudar porque, sem saber o que queremos mudar, não conseguimos mudar nada. Portanto, se me perguntarem o que é poder... Bem, poder, tradicionalmente, não é uma inovação. Poder é a capacidade que alguns seres humanos têm de forçar ou influenciar o comportamento de outros para que eles se comportem de acordo com os interesses e os valores dos detentores do poder.
E por que razão é tão importante compreender o papel do poder na nossa sociedade hoje?
Não é só hoje. Ao longo da história da Humanidade, poder tem sido aquilo a que eu chamaria ADN das sociedades. Porque quem quer que seja que tenha poder, seja uma pessoa, sejam instituições nas quais uma pessoa ou várias pessoas são fundamentais, quem quer que seja que tenha poder tem a capacidade de estabelecer as regras, as normas e as instituições da sociedade, bem como a forma como vivemos. Portanto, é o ADN das sociedades e o nosso código de comportamento que é reforçado pelas instituições.
Nós somos livres. Sim, nós somos livres dentro das condições que aqueles no poder consideram aceitáveis ou inaceitáveis. Felizmente, este poder não é absoluto — poder absoluto com algumas excepções na história, mesmo em momentos de um regime absolutista —, existe sempre alguma resistência. Existe sempre alguém a dizer: “Nem pensar”. Por norma, eles são mortos, mas, em princípio, existe sempre e sempre existiu: onde há poder, há resistência a esse poder.
De facto, onde há dominação, em termos de poder, a relação pode ser aceite, rejeitada ou contrariada. E por isso eu digo que, de facto, as instituições da sociedade são construídas através das dinâmicas e da relação entre poder e contrapoder.
Contrapoder é a tentativa daqueles que não se sentem representados nas instituições da sociedade, e sob as condições de poder existentes no momento, de tentar alterar o panorama. Para alterar aquelas que são as regras da sociedade. E há diferentes formas de o fazer, desde esforços e mesmo, em alguns casos, desafios em termos evolutivos, para capacitar as nossas democracias através de mobilização para tentar vencer novas eleições.
Portanto, o resultado entre poder e contrapoder é um conjunto de normas e instituições sob as quais nós vivemos e pelas quais nós vivemos. E isso, em certa medida, significa que estão sempre a mudar, constantemente. Todos os dias. Todos os dias há tentativas de impor poder de acordo com normas estabelecidas e de desafio a esse mesmo poder.
Nós estamos, neste momento, a assistir a grandes agitações sociais. Existem dinâmicas de poder e contrapoder a trabalhar neste momento. Como vê esta mudança? Como é que isso está a mudar a relação entre estes dois diferentes tipos de poder, numa sociedade em rede, depois de tantos anos com a Internet a ser algo central no nosso mundo?
Para perceber isto, é preciso relembrar que existiram duas formas fundamentais de exercer poder ao longo da história e, de facto, todas as teorias de poder podem ser reduzidas a estas duas: poder por coerção e poder por persuasão.
Apesar de o poder por coerção ser mais decisivo — por exemplo, “tu fazes isto ou eu mato-te ou eu mando-te para a prisão”, o poder por persuasão é, na verdade, mais eficaz, porque influencia as nossas mentes. Agora, na era da Internet, o que tem acontecido é que a comunicação tem sido largamente descentralizada no mundo das redes sociais, que é muito mais autónoma em termos de mensagens, não em termos de domínio das grandes empresas, mas em termos de mensagens.
Existem muito mais pessoas a intervir neste diálogo e nesta oposição e nestas controvérsias do que num mundo em que os media tradicionais teriam, de facto, a capacidade de moldar grande parte da comunicação.
É o que eu chamo “nós não mudámos para a liberdade digital; passámos de comunicação em massa para comunicação pessoal em massa”. Porquê pessoal? Porque as pessoas constroem as suas próprias redes desde o princípio, elas produzem as suas próprias mensagens e, ao mesmo tempo, são remetentes de mensagens e receptores de mensagens.
Existe uma constante interacção e uma constante descentralização do sistema de comunicação. Mas e depois? Bem, as pessoas que têm poder mobilizam os seus recursos também nas redes sociais para prevalecerem na modelação de comportamento.
E esta é a razão fundamental pela qual as redes sociais, ao invés de serem uma ágora electrónica, são um campo de batalha entre projectos, ideias e manipulações que ocorrem em simultâneo.
Num dos seus livros, O Poder da Comunicação, realçou a importância da comunicação para o poder, o facto de o poder ser transformado de alguma forma através de redes de comunicação. Tornou-se bastante popular nos últimos anos culpar as redes sociais e a Internet pela maioria dos problemas que vemos hoje em dia. Como é que vê a relação entre a chegada das novas tecnologias e, ao mesmo tempo, o tipo de fragmentação que vemos na sociedade e o descontentamento crescente nas sociedades democráticas por todo o mundo?
Bem, primeiro lembrem-se de que estamos a falar sobre o poder das ideias, mas ideias são, em termos de comunicação e em sistemas de comunicação alargados, tão poderosas a influenciar comportamentos como a desencadear emoções — lembrem-se que a neurociência tem demonstrado que nós somos animais emocionais. São as nossas emoções, os nossos sentimentos que determinam o nosso comportamento.
Um dos principais erros que têm tido enormes consequências práticas na democracia liberal é pensar que políticas racionais, melhores políticas em termos racionais, vão convencer as pessoas. De forma nenhuma. De forma nenhuma. É bom para os governos e as instituições terem políticas razoáveis. Definitivamente. Mas não é dessa forma que conseguem convencer as pessoas se elas tiverem emoções muito fortes. O simples facto de ter uma política económica sensível e boa, um controlo da dívida, uma boa gestão do trânsito nas cidades não vai mudar os preceitos fundamentais. Portanto, a verdadeira questão é saber como vamos desencadear emoções positivas, ao invés de emoções negativas. E isso não tem a ver com a criação de políticas; tem a ver com comunicação.
Agora, será que as tecnologias digitais e as redes sociais hoje são as culpadas pela perturbação que tem sido observada na sociedade? De maneira nenhuma. Porque a tecnologia não determina. A tecnologia modera. O que a Internet faz é favorecer uma comunicação sem impedimentos entre as pessoas. E essa capacidade expressa a variedade humana em qualquer sociedade, bem como a variedade de ideias e projectos. Hoje, a Internet é um espelho das nossas sociedades, um espelho de nós mesmos. Se nós não somos boas pessoas, isso será reflectido na Internet. Nós, na verdade, aceitamos uma ideia que muita gente aceitou: o advento da Internet como uma tecnologia de liberdade e uma tecnologia libertadora. É mesmo. Nós apenas nos esquecemos de que “livre” nem sempre significa “boa”.
Existe um paradoxo entre o facto de a Internet ter nascido como uma ferramenta de liberdade, que permite a qualquer indivíduo expressar-se, e, ao mesmo tempo, existir uma concentração de poder nas mãos de um pequeno número de grandes empresas. Como é que explica isto?
Nós temos de fazer uma diferenciação entre o controlo de posse, o controlo de conteúdo e o controlo de substância da comunicação, o que significa que é preciso que nos lembremos de que o modelo de negócio de base de todas essas empresas ou de todas as empresas ligadas à Internet é tráfego, densidade do tráfego, porque eles vivem dos nossos dados. E de vender os nossos dados ou de usar os nossos dados para publicidade. 91% das receitas da Google vem de publicidade indirecta — 91%, de acordo com a própria Google.
Por isso mesmo, as empresas não estão interessadas em criar qualquer barreira a uma comunicação sem obstáculos. Eu prefiro “sem obstáculos” a “livre”. “Livre” depende de um contexto mais alargado. Por isso, as empresas estão interessadas em mais e mais tráfego. É por isso que a polarização as ajuda. Porque polarização significa que você diz uma coisa, eu vou dizer o contrário e vou lutar consigo até ao fim. Lutar até ao fim significa comunicar até ao fim. E isso é tráfego. Portanto, nem em termos de modelos de negócio nem na possibilidade de monopolizar o conteúdo e o tráfego as empresas param a chamada comunicação sem obstáculos na Internet. Monopólio de propriedade? Sim. Monopólio de comunicação? Não.
Mencionou que as redes sociais não podem ser culpabilizadas, que não são a causa daquilo a que estamos a assistir, mas podem ser vistas mais como um catalisador. Ainda assim, vemos um aumento da falta de confiança por todo o mundo. Se olharmos para os barómetros, vemos que os níveis de confiança nos Governos e nas instituições tradicionais de poder têm descido por todo o mundo. Isto não é apenas um problema europeu, é um problema global. Como explica esta tendência sistémica?
A democracia liberal está a perder as suas bases sociais de representação política devido a causas profundas como as pessoas se sentirem totalmente excluídas de qualquer processo de decisão, à excepção de colocarem o seu voto numa caixa uma vez em cada quatro anos. À excepção disso, elas não têm qualquer outro meio de representação política ou qualquer controlo. Como tal, o que é que fazem? Quando podem, protestam. Quando conseguem, apoiam partidos que se colocam fora do sistema para, então, entrarem no sistema. Logo que entram no sistema, pouco tempo depois, estes são integrados nas regras do sistema, mesmo a extrema-direita e ainda mais as pessoas à esquerda, porque são mais democráticas. E, assim que entram no sistema, são considerados iguais aos outros.
A ligação de confiança tem sido quebrada na maioria das sociedades para a maioria das pessoas. E reparar essa ligação é algo muito sério porque lembrem-se: emoções. É ditado por emoções. Como tal, a não ser que sejamos capazes de desenvolver emoções positivas de maneira real e assim participar num processo de comunicação que seja efectivo, toda a tendência vai continuar a acelerar.
Mas neste novo mundo que é criado pela arquitectura em rede da sociedade, é essa uma nova ideia de poder a emergir, ou é possível um novo balanço de poder?
Em princípio, nós também estamos agora num mundo de poder em rede, porque existem estruturas de poder que, ao contrário de estarem historicamente separadas ou concentradas num só lugar, agora existem tanto a nível nacional como internacional.
Os nós principais nas redes de poder são finanças, empresas de tecnologia, partidos políticos tradicionais, burocracias estatais tradicionais, a indústria dos meios de comunicação e as grandes empresas. Todos estes, tudo isto, fazem parte da rede. Assim, cada nó de poder tem a sua própria dinâmica e o seu próprio objectivo. Mas tudo isto faz parte da rede.
Disse que as pessoas têm perdido a confiança nas actuais formas de poder, quer sejam políticas, quer financeiras. E com todo o direito, tendo em conta o que disse até agora. Consegue ver algumas novas formas de poder a emergir pelo mundo?
Eu vejo. A minha esperança que vem da observação que fiz ao longo da minha vida de muitos países tem sido sempre os movimentos sociais, o que não quer dizer movimentos políticos, apesar de terem sempre consequências políticas.
Mas eu considero movimentos sociais aqueles movimentos, movimentos autónomos, que não estejam ligados a qualquer opção ou partido político, que sejam movimentos culturais. Eles tentam mudar os valores da sociedade.
Agora, pensando amplamente na Europa. Eu penso que o principal problema é que os sistemas políticos têm tido pouca capacidade de traduzir a energia gerada pelos movimentos sociais em novas políticas e em possibilidades que voltem a legitimar as instituições.
O movimento ambientalista, Greta [Thunberg] na Suécia… Bem, não é só a Greta que está desapontada, mas grande parte dos seus seguidores está desapontada. Eles não consideram que a Europa esteja a encarar seriamente a crise climática, que é fundamental, é claro. Esse é o problema.
O problema não é tanto se eles são fontes de mudança. As fontes de mudança, no fim, necessitam de apoio ao nível das instituições políticas. E isso não está a acontecer. Portanto, eu ainda estou optimista porquê? Porque a história nunca acaba. E porque as lições de História nos mostram que mesmo quando não vemos o embrião de algo novo, quando não vemos os movimentos sociais ou tendências culturais diferentes, eles estão lá. Eles estão lá. E eles podem unir-se a dada altura e provocar um movimento social que vai desenvolver novas formas de democracia descentralizada. Penso que os sistemas dos países não mudam por escolha. Eles mudam por necessidade. Quando estamos à beira da catástrofe, aí existe alguma reacção. No meu livro Rupture, a conclusão é aquilo que eu prevejo, visto que não vejo forma de a democracia mudar nesses aspectos, a minha previsão é caos, é caos. Mas, acrescentei, o caos pode vir em diferentes formatos e a minha esperança é que seja um caos criativo, o que significa que, numa situação de caos, as coisas que aparentam ser impossíveis tornam-se possíveis. As pessoas encontram alguma abertura, alguma janela para o futuro e as coisas podem mudar nesse sentido.
A série de conversas ReImagine Talks é uma iniciativa do think tank Re-Imagine Europa, em colaboração com os jornais Der Standard, Il Sole 24 Ore, La Vanguardia, LeSoir, Rzeczpospolita e PÚBLICO