Pavia, uma vila-poema no Alentejo
Terra de poetas e pintores, a vila de Pavia, no concelho de Mora, é uma ode ao Alentejo. Casario branco de risca amarela, com uma anta-capela e uma igreja-fortaleza, Pavia é vila de muitas histórias.
“O livro de Fernando Namora começa assim: 'A vila é uma rua. Vem do alto dos eucaliptos pedindo licença à planície para lhe interromper o sono, atravessa uma encruzilhada de estradas de onde lhe vem o aceno do mar ou de Espanha e, bruscamente, num ímpeto de ousadia, trepa o planalto em busca de uma igreja que foi coito de mouros e abades.'”
A vila de que fala o escritor é Pavia, no concelho de Mora. E a voz que ouvimos parafrasear de memória o arranque d'O trigo e o joio é de Custódia Casanova, presidente da Junta de Freguesia desde 2021 mas, sobretudo, contadora das histórias da terra. Foi aqui que nasceu, em 1955, e ainda que a família se tenha mudado para Évora quando tinha 11 anos para que ela e os irmãos pudessem continuar os estudos, nunca esqueceu a vila onde passou muitos Verões depois, onde chorou quando aqui deixou de ter família e casa, e onde não descansou enquanto não regressou definitivamente, em 2006.
Para Custódia, Pavia continua a ser aquela rua, na verdade uma sucessão de ruas (Conselheiro Fernando de Sousa, Velha, de São Paulo) que sobem tão aprumadas que só com esmero ou conhecimento se descobre onde começa uma e termina outra. O caminho de paralelos que rasga a vila, no entanto, já não lhe parece “tão grande como quando usava um bibe branco, com folhos no peitilho e barra bordada” pela mãe, descreve no livro Pavia Meu Encanto, publicado em 2016. “Era tudo ali”, recorda agora. As tabernas, as mercearias, o “clube dos caixotes” onde se reuniam “os grandes latifundiários” da terra, ou a pensão da dona Umbelina, “realmente muito beata” como a personagem Quitéria, a que terá servido de inspiração na obra de Fernando Namora.
O escritor e médico viveu em Pavia entre 1946 e 1951, assinala uma placa na casa onde morou na Rua Nova, entretanto em “degradação porque os herdeiros não se entendem”. Aqui exerceu medicina, aqui nasceram alguns dos Retalhos da Vida de um Médico e boa parte d'O trigo e o joio. E da janela do antigo Paço dos Condes do Redondo, “donatários da vila lá muito para trás”, entretanto pertencente à casa agrícola de Joaquim Arnaud, Namora pintou ainda o casario bucólico de Pavia, com as suas “grandes e monumentais chaminés”.
Hoje em dia, muitas já se encontram alteradas para acomodar as necessidades dos tempos modernos, mas outrora era assim a maioria das habitações da vila: um rectângulo baixo de puro branco e risca amarela, uma chaminé onde cabia uma família inteira nas noites de Inverno e uma porta para a rua. Nada mais. Lá dentro, “a sala de fora”, com “a cozinha ali logo à entrada”, e “a casa de dentro”, onde “dormiam montes de filhos juntos e pais e tudo”.
“Era tudo uma escuridão muito bonita”
Passear com Custódia por Pavia é como abrir janelas sobre as memórias de uma vila histórica, que recebeu foral de D. Dinis em 1287 e foi sede de concelho até 1838. As ruas voltam a encher-se de vida e cada casa acolhe personagens de um tempo tão recente e já tão longínquo, de quando “havia muita gente” e “isto era tudo cheio de meninos e pessoas”. Na Travessa do Arco, quase conseguimos ver o mestre Jorge, “alfaiate de grande gabarito”, ainda sentado num dos bancos a ler à sombra das tardes de Verão. Ou a casa do padre, hoje um cabeleireiro, onde as mães levavam os miúdos ao sábado para verem um bocadinho de televisão. “Depois passava com uma bandeja para pormos um cruzado para ajudar a [pagar a] luz”, recorda. Ou a dona Custódia, que vivia numa casa de esquina, entre a igreja matriz e o miradouro, e ali ficava a contar histórias à criançada nas noites quentes. “Como não havia luz na rua, isto era tudo uma escuridão muito bonita”, recorda. “Via-se a Via Láctea, havia pirilampos.”
Agora “quase não se vê ninguém”, lamenta. Concentram-se alguns homens na única esplanada, frente ao coreto. Cruzamo-nos com um casal de turistas de Barcelona no museu dedicado a Manuel Ribeiro de Pavia. E pouco mais. A escola primária “já acolheu 150 e muitas” crianças mas este ano terminaram 14, contando com o pré-escolar. Segundo os Censos de 2021, moram na freguesia pouco mais de 700 pessoas. Muitas das casas são de quem vem passar as férias ou os fins-de-semana.
Margarida Nunes foi durante dois anos uma dessas pessoas, mas há nove que se mudou definitivamente de Lisboa, onde foi fotojornalista e produtora no Centro Cultural Malaposta. Foi em Pavia que, “de repente”, encontrou “o tempo, o espaço, a maneira de as pessoas se organizarem socialmente” e o “sentido humano do próximo, do falar” que tinha vivido na sua infância no Lobito, em Angola. Lamenta, no entanto, a falta de atenção sobre o interior. “Estamos sempre aqui a lutar pela igualdade”, aponta, ao lembrar a falta de rede telefónica em algumas casas ou de Internet que permita trabalhar remotamente.
Igreja-fortaleza
A igreja matriz, devota a São Paulo, é uma das “pérolas” de Pavia, classificada como Monumento Nacional desde 1939. “Já existia em 1320”, quando D. Dinis “doa as igrejas da vila à Ordem de Avis”, mas terá sido reconstruída no século XVI e novamente “no tempo de D. Manuel”, depois de o terramoto de 1755 ter danificado a galilé, tendo sido substituída pela “aberração” da fachada actual, que “não tem nada a ver” com as laterais e os seus merlões e colunatas “muito ao estilo árabe” a lembrar uma fortaleza, aponta Custódia. Nada que tenha impedido José Saramago de a descrever como “muito bela” na sua Viagem a Portugal.
É no interior da igreja que encontramos Isabel e Eugénia. Vieram molhar as plantas, sacudir o pó. No pico do Verão, o calor é tanto que o carrasco de subir e descer a rua não compensa o fresco que aqui se sente, conta Isabel. O termómetro anda quase sempre acima dos 40.º C. Ao sairmos, a olaia “velha, velha” devolve-as à infância. “Quando era criança vinha aqui à cola”, recorda Eugénia, regressada à terra há 27 anos, depois de 25 em Lisboa. “Tinha assim uns bocadinhos adentrados para fora, a gente partia, metia dentro de um frasco com água e depois era a nossa cola.” Hoje o que vemos no canteiro entre a igreja e o cemitério é sobretudo o rebento da árvore anciã, mas outrora era ver quem a trepava mais alto.
O miradouro de Pavia fica a dois passos e dali o horizonte é vasto sobre um manto de oliveiras. Pavia chegou a ter quatro lagares, mas hoje nenhum funciona. Muitas das árvores são milenares, e dezenas foram fotografadas ao longo das últimas décadas pelo fotógrafo Bruno Requillart. “Eu sou do Norte de França e a primeira vez que cheguei a Pavia foi a primeira vez que vi oliveiras tão grandes”, recorda. “Toda a minha vida tirei fotografias de árvores, mas estas são tão extraordinárias.” Algumas fazem parte da exposição patente nas ruas da vila (ver caixa), mas o plano passa por dedicar-lhes um livro inteiro, com quase uma centena de imagens.
Príncipe sem vintém
Talvez inspirado por Roberto de Pavia, Itália, que dá nome à terra, também Manuel Ribeiro, uma vez chegado a Lisboa, dá ao nome a terra que o viu nascer, Pavia, Alentejo. Desenhador compulsivo, Manuel Ribeiro de Pavia ilustrou “os livros dos grandes [escritores] do seu tempo”, incluindo Alves Redol, Fernando Namora e edições portuguesas de obras de Tolstoi e Dostoiévski. No entanto, o 'príncipe sem vintém', como o apelidaria José Gomes Ferreira, acabaria por morrer na miséria, no dia em que fazia 50 anos, em 1957.
Na casa-museu, inaugurada em 1984 e com nova exposição e design desde 2021, encontramos algumas obras, livros que ilustrou e pormenores da biografia, nomeadamente os muitos desenhos dedicados ao Alentejo e suas gentes. Ao lado, outro dos ex-líbris de Pavia, classificado como Monumento Nacional desde 1910: uma anta megalítica de generosas dimensões, que o homem decidiu transformar em capela, dedicada a São Dinis, “pensa-se que no final do século XVI”, com altar lá dentro e sino e cruz no topo.
Despedimo-nos de Pavia no largo que é a “sala de visitas” da vila, como apelida Custódia, com a junta de freguesia, capela, mercearia, taberna e, ao centro, um grande coreto, onde estacionava a Biblioteca Itinerante da Gulbenkian e, anos mais tarde, dona Margarida doaria versos do marido, o poeta da terra Manuel Luís Caeiro, tirados de um saquinho como rifas de papel. No primeiro fim-de-semana de Setembro, o largo encher-se-á de música e danças nas festas de Pavia e, pela noite de São Martinho, acender-se-á a fogueira, com castanhas, água-pé e porco assado, “distribuídos gratuitamente a toda a gente que venha”. É então que, “pela calada da noite”, aqueles que tiverem maior inspiração pegarão num pedaço de carvão para seguir pelas casas escrevendo quadras dedicadas a “quem vive lá dentro”. Muitas rimas ainda se lêem sobre as paredes alvas ao longo do passeio. Pavia é um poema.